17 de abril de 2010

O CULPADO E A LEI

Com o aumento incontrolado dos índices de criminalidade as pessoas se vêm a toda hora confrontadas pelo noticiário com “injustiças” cometidas em nome não se sabe de que princípios, o mais das vezes quando um elemento que confessa a prática de um crime é posto na rua em nome de algum formalismo processual.

Ora, como entender isso? Por que profissionais que só se ocupam de estudar as filigranas legais cometem erros capazes de invalidar toda uma investigação bem sucedida, contribuindo ainda mais para a sensação de impunidade que assalta a população?

Em primeiro lugar, devem as pessoas saber que o Estado Democrático de Direito é construído sobre o primado da lei, que deveria representar a vontade da maioria. Essa maioria legisla através de seus representantes eleitos e postos no Parlamento para isso. No entanto, o Estado Democrático de Direito dá vez a que as minorias, étnicas, sexuais, culturais, religiosas, econômicas, também se possam manifestar – os direitos fundamentais de última geração contemplam o direito à diversidade e ao pluralismo, pelo qual, por exemplo, uma minoria religiosa pode se organizar de molde a obter maioria numa Câmara Municipal e impor ou dispor festas religiosas de sua confissão à maioria.

O primado da lei, no tipo de sociedade democrática ocidental em que vivemos, é tão importante que toda Constituição Federal que o Brasil redige contempla um princípio que é uma conquista da civilização: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude da lei. Assim, não há mais coercitividade em ordens emanadas de barões, baronetes ou do Príncipe, nem mesmo na República (a nossa ainda mantém estes personagens, mas com outros nomes). A coercitividade vem, sim da lei. Só ela obriga.

Às vezes o problema são as leis locais, quando redigidas em desacordo com a lei maior, aquela que nos organiza como Estado de Direito. Por isto a Constituição reserva alguns assuntos nos quais somente a União, para continuarmos a tê-la, pode legislar. Se o Poder local se mete nestes assuntos, seja para o bem ou para o mal, atenta contra a ordem nacional. Neste caso pára-se tudo e faz-se uma verificação da conformidade daquela lei local com a lei maior. É o controle de constitucionalidade.

Agora o implicado em processo criminal que confesse a prática de um delito. Ora, se é réu confesso, para que se perder mais tempo com preciosismos processuais? O raciocínio, que muito enfrentei na sala de aula, me faz lembrar uma história do Velho Oeste americano: naquelas plagas o pior delito era o roubo de cavalos. Tendo sido capturado certo dia um facínora ladrão de cavalos num daqueles progressistas povoados, a turba revoltada já tinha em mãos a corda para enforcá-lo numa árvore da praça. Eis que surge, atirando para cima e detendo o justiçamento, o defensor da lei e da ordem, o homem da estrela de prata, vociferando-lhes na cara que o acusado tinha direito a um julgamento. Ao que o líder da “maioria” respondeu: - concordo, mas vamos julgar logo para que possamos enforcá-lo ainda antes do pôr do sol...

Em eras passadas a confissão era a Rainha das Provas, aquela que se buscava a todo custo, até para que o julgador fosse dormir convencido de ter praticado justiça. No regime do atual Processo Penal brasileiro a confissão tem valor relativo, sua validade deve ser aferida pelo Juiz em consonância com os demais elementos probatórios apurados no processo. É que vale no processo penal a verdade real, a forma como os fatos realmente aconteceram, ou tão próximo disso quanto humanamente possível verificar. E o acusado pode ter interesse em se auto-acusar - para proteger alguém ou para dificultar a continuação das investigações, por exemplo.

Então, se até mesmo a confissão deve ser corroborada por outros elementos, o que importa mesmo são as provas. É fato, e aqui a observância da lei deve ser rigorosa, porque a colheita de provas, das provas que serão usadas depois para decidir, é isso o que vai selar a sorte do acusado. Existem provas que são proibidas, existem provas que não têm validade. Mas geralmente o que impede o livre curso de provas no processo é o prazo legal para sua produção pelas partes. De tal maneira que, escoado o prazo, a parte perde a oportunidade de trazer a prova para os autos. É uma das conseqüências do Princípio da Igualdade de Armas no processo. Daí só mesmo o Juiz, se considerar aquela prova imprescindível para proferir sua decisão, poderá produzi-la, e em determinadas condições.

Porque é o Juiz quem preside à produção das provas. Para isso, a principal ressalva que a lei faz ao juiz é que tenha competência para tanto, isto é, que tenha atribuições legais para estar ali. Um Juiz do Trabalho ou de Família não pode presidir um processo em que um policial militar troca tiros com um traficante, que vem a falecer. Cada Juiz com sua competência. E no Estado de Direito, a cada acusado o seu juiz. O Princípio do Juiz Natural é outra garantia da civilização, que impedia, na época da organização dos Estados nacionais, um acusado passasse da justiça de um feudo à de outro, ao sabor dos interesses do senhor feudal. Mas para isso, os iguais devem ser tratados igualmente. Se um em determinadas condições deve ser julgado por um juiz, outro em condições idênticas não poderá ser julgado por outro juiz. É uma das conseqüências do Princípio da Isonomia.

Tudo isso, competência, juiz natural, produção de provas, é garantia do cidadão. Não, não do cidadão que está sendo processado, mas daquele que não está e que provavelmente nunca vá sê-lo. Porque é este conjunto de garantias legais que me permite dizer aqui que ele pode nunca vir a sê-lo. Se esse conjunto de garantias deve ser diminuído para mandar o confesso imediatamente para a cadeia? Isto é com cada um, mas ele só é culpado à vista da lei. Pessoalmente lido numa repartição da justiça responsável pelo controle da atividade policial militar, e de tanto acompanhar o trabalho diário dessas mulheres e homens muitas vezes me pego desejando outros parâmetros de garantias legais, a exemplo do que foi feito na Itália, para combater a atividade criminosa organizada.

Mas mesmo que, quanto mais democrático o Parlamento, mais este parlamente, não poderá ser o juiz como tal a introduzir esses outros parâmetros. Porque senão se estará substituindo ao Príncipe, e então, como é da natureza humana, um outro pode querer vir a ser mais Príncipe do que ele. E aí recomeçaremos novamente do zero - aliás, como já previra Aristóteles.
(Publicado na Revista ESSA, Vitória, Ano II, n.º 12, Abril/2006)