O nome Riachuelo ficou gravado nos anais da Marinha brasileira como exemplo de esforço e de sucesso das armas nacionais. Em águas tributárias do rio Paraná, próximo à cidade argentina de Corrientes, teve lugar a mais significativa peleja naval travada pela Armada brasileira, fato que se deu, como é de conhecimento geral, a 11 de junho de 1865, durante o desenrolar das operações que se verificavam no bojo do conflito conhecido na historiografia por Guerra da Tríplice Aliança.
A batalha de Riachuelo teve importância estratégica muito grande por cerrar ao inimigo os caminhos que lhe possibilitariam comunicar-se com o exterior, representando duro golpe nas forças paraguaias. A partir desse sucesso aliado organizou-se a contraofensiva que levaria à derrota de Solano Lopez cinco anos depois, em 1870.
O esforço de guerra despendido pelo país foi tremendo. Os fatos históricos são muito bem conhecidos, as análises de natureza militar se multiplicam para fins historiográficos ou propriamente estratégicos. Mas o que parece esmaecido pelo tempo é a dimensão simbólica daquele feito, hoje relegada, em grande medida, às academias militares.
E, no, entanto, não foi sempre assim. O feito de Riachuelo significou à altura injeção de ânimo que repercutiu sobre a autoestima da população impressionada pela guerra e reforçou valores que vinham sendo incutidos no imaginário nacional, com reflexos que se fazem sentir nos dias de hoje.
Mas a percepção da dimensão simbólica dos fatos históricos nem sempre se depreende da sua simples narração ou das análises técnicas do domínio da historiografia ou, no caso dos fatos militares, do domínio da Estratégia e da História Militar. O que não acontece nas abordagens de caráter literário, mais propícias a esse gênero de apreensões e de reflexões.
Elastizando o campo de estudo da História Militar para incluir aí os fatos militares que se podem chamar de internos, isto é, conflitos armados envolvendo forças antagônicas estritamente nacionais, conta-se um significativo rol de obras literárias que se ocupam de temas dessa natureza, em prosa e verso. Em prosa mais que em verso, como é comum acontecer em outras áreas.
Refinando o campo de estudo para os fins propostos neste texto, tenhamos em conta a produção em verso tendo como tema conflitos armados, valendo referir o Gestis Mendis Saa, de José de Anchieta (fonte que utilizei para embasar a análise da refrega entre portugueses capitaneados por Fernão de Sá e autóctones Goitacazes e Aimorés na altura do hoje município de São Mateus, no Espírito Santo, em 1558); o Tragédia Épica (Guerra de Canudos), de Francisco Mangabeira, publicado em 1900 e que se ocupa do trágico episódio ocorrido no sertão da Bahia; e o Riachuelo, de Luiz José Pereira da Silva, publicado em 1868, tratando-se evidentemente deste último de que adiante nos ocuparemos.
O poema:
A mais simplificada definição que se pode adotar de poema épico é o tratar-se de extensa composição em verso ocupando-se de temas históricos, mitológicos ou lendários. O Riachuelo trata-se de épico em cinco cantos, de autoria, como dito, do advogado e escritor Luiz José Pereira da Silva. O autor, natural de Valença, no Rio de Janeiro (1837), exerceu o magistério, lecionando línguas, e teve atuação destacada na imprensa da Corte. Deixou romances e peças de teatro. Riachuelo, para Sacramento Blake, “é o seu mais importante trabalho, em que com elegância e fidelidade commemora a memorável batalha do Riachuelo, na campanha do Paraguay”. E acrescenta: “este poema teve mais edições, sendo a terceira de 1883, no Rio de Janeiro, e antes de sua publicação completa, foi editada uma parte, isto é, os dous primeiros cantos, no Rio de Janeiro, 1865”. O que atesta que os versos foram compostos pelo poeta no calor dos acontecimentos.
A última edição comercial do romance é de 1904, pelo que arrisco afirmar que não resistiu à propaganda republicana. É que o autor elogia a dinastia imperial brasileira e se refere às forças brasileiras como combatentes pela liberdade, enquanto às paraguaias como fanatizados seguidores do tirano Solano Lopez. Das palavras do autor no prólogo à primeira edição: “A batalha do Riachuelo é o mais brilhante episódio dessa guerra cruenta que movemos ao governo de um povo tão infeliz quanto bravo; tão cego pelo fanatismo que lhe tranca as portas do progresso, quanto ingrato aos sacrifícios e protecção, que a generosidade de seus vizinhos lhe dispensou sempre”. Era o ânimo contemporâneo, que sobreviveu mal aos revisionismos que se seguiram.
E, no entanto, como dito acima, a composição encampa ideias que ganhavam corpo à altura. Confira-se nas estrofes XXX a XXXII do Canto Primeiro o elogio do autóctone, caro ao Romantismo brasileiro: “Todo o solo era em posse do gentio/ De estatura robusta e larga face”; na estrofe XXXVIII o louvor da mestiçagem: “Cada raça cruzada mais se apura/ quanto mais das origens afastada”; nas estrofes LXXVIII a LXXXIII do mesmo Canto o elogio a Tiradentes: “Bem o provaste tu, ó grande, ó forte,/ Ó martyr santo, Xavier bemdito!”.
O louvor à causa da abolição perpassa vários trechos, como na estrofe XX do Canto Terceiro: “E no meio social, em que definha/ Não espera, não ama e já não pensa/ Resignado o captivo! Lei mesquinha”, ou na estrofe XLI do mesmo Canto: “Porque fadada foi a raça triste/ Ao luto, que em si traz do nascimento?” Muitos dos combatentes brasileiros são negros, como constata o autor na estrofe XXII: “Na lucta, que se trava, muitos vejo/ Que o triste captiveiro já passarão”. Nas estrofes XXII a XLIII romantiza a história do “preto Segismundo, o ex-captivo”, embarcado no navio Araguary, que após engajar-se na Marinha será um dos que encetarão combate naquele dia.
A descrição da batalha:
Os acontecimentos da batalha, largamente conhecidos, são descritos em tons ardentes nos versos de Pereira da Silva. Desde o avistar a Armada contrária (Canto Primeiro, XLII) naquele domingo da Santíssima Trindade, à imediata perseguição aos navios paraguaios (idem, XLVI). Segue-se o fogo cruzado (idem, XLVI a LXVIII) quando então a “fuga” paraguaia se detém no Riachuelo.
O Canto Segundo se abre com as Armadas frente a frente; uma nuvem se rasga e “surge nos ares uma imagem santa/ Da virgem meiga, mas chorosa e langue” a incentivar ao combate os “filhos do Cruzeiro”, e a certa altura (estrofe XXIX) dirigindo-se diretamente ao comandante Barroso: “E vós, valente chefe, a quem pertence/ Estes bravos levar para a victoria/ Fareis por que de vós o mundo pense/ Não ter o mundo mais soberba glória/ Quando esta do Brasil achar que vence/ Toda a fama da antiga e nova história”. O Canto encerra com a ordem de Barroso para o combate.
O Canto Terceiro abre com o reinício do combate: “Primeiro a voz de fogo alegre ouvira/ Do Amazonas a gente destemida,/ Depois a mesma voz se repetira/ Em cada um dos vasos proferida;/ O estrondar do canhão repercutira/ Começando a peleja mal-ferida,/ E todo o novo estrondo renovado/ Por outros era logo secundado” (estrofe I). O encalhe da Jequitinhonha, que arrostara o fogo das baterias postadas na margem do rio (estrofes XLVIII e XLIX): “Lutando com a terra a canhoneira/ [...] Distante dos mais vasos se postara/ Era alli a coragem altaneira/ Que os canhões da barranca desafiára”, cujo sobreviventes foram transportadas à Beberibe.
Desfia o autor o registro do desenrolar do combate a bordo de cada um dos vasos brasileiros, o drama da Iguatemy, que perdeu dois comandantes (estrofes L a LXIX), inclusive a Beberibe, (onde pelejava a primeira guarnição que da província do Espírito Santo seguira para o teatro de operações), tendo sempre em conta os pesados estragos feitos pelas baterias postadas na margem do curso d’água, de que é exemplo a estrofe XCV: “Varado dos cartuchos das barrancas/ João Pinto cáe, com sete companheiros”.
O Canto Quarto inicia em pleno combate, dando ideia do que era a luta sem quartel que se feria: “A pugna segue mais e mais travada,/ E mais e muito os vasos se avizinhão;/ Estoira, estronda o ar veloz granada,/ E os cacos no convez redemoinhão;/ A peça que troveja é renovada,/ Correntes, taboas soltas torvelinhão,/ E distancias, nem ordem mais se guarda,/ Nem já patentes mais distingue a farda”. À batalha à bordo da Parnahyba, arrostada por três embarcações contrárias, consagra, desde a estrofe VII, um largo espaço, detendo-se nos feitos que demonstram a bravura do Guarda-Marinha Greenhalg: “Official inimigo, a espada nua ,/ O acommete intimando por que arreie/ Da mezena a bandeira, içando a sua./ Greeenhalge, sem tardar, porque o premeie,/ - Pois de propor-lhe a infâmia não recua, - / Faz que a vida no peito lhe fraqueie/ Ao peito despedindo a bala certa/ Que deixa para a morte a porta aberta” (estrofe XX). Na estrofe XV dera já um vivo panorama da refrega: “Do convéz o verniz o sangue lava/ E tinge os soltos cabos desprendidos/ Da malagueta, que no chão entrava/ os passos que amiudão mal sustidos/ Os golpes a desordem dominava,/ O numero escondendo dos feridos,/ Que ruem uns no proprio sangue envoltos,/ E outros o rio leva em si revoltos” e na XXXI faz novo elogio dos combatentes brasileiros: “E combatem-se agora os brazileiros/ Contra o triplo de bravos lidadores,/ Quem dissera o valor de taes guerreiros!”.
Ao Imperial Marinheiro Marcílio Dias consagra as estrofes XXXV a XLV, de que destaco: “Eram quatro inimigos e valentes/ Contra ti que eras só, Marcilio forte./ Contra os sabres afiados, reluzentes,/ A espada brandes; e do fino corte/ Zimbrão golpes nos ares estridente/ Que o bom Deus das batalhas te conforte;/ E que o anjo da gloria te bafeje/ Por que teu nome os ciclos rumoreje”. Malgrado a encarniçada resistência a bordo, o revés da Parnahyba era iminente, tanto que o comandante “manda à pólvora atear ardente flamma” (LVII), para que o equipamento não caísse em mãos inimigas.
O Canto Quinto abre com a ousada manobra de Barroso, que em socorro da Parnahyba faz precipitar a capitânea Amazonas sobre a Jejuhy, que vai a pique (estrofe XII), sobre a Salto (estrofes XV e XVI) e sobre o Marques de Olinda(estrofe XXII) que, apresado pelos paraguaios no início das hostilidades, fora incorporada à Armada de Lopez. Por sua vez a Belmonte e a Mearim atacam a Salto, causando baixas no comando paraguaio. Assim, das que “a infâmia commetterão” (estrofe XXVII) de abordar a Parnahyba somente a Taquary restava, fugindo ao ataque redobrado.
A fúria inimiga recrudesce: “A lucta se encarniça, fúrias cobrão/ Com tal perda marujos e soldados;/ Certeiros tiros contra nós redobrão/ Que, por tempo mais largo sustentados,/ Não vive a crença, mas juízos sobrão/ Ficavão nossos vasos destroçados./ Hora cruel de tétrica memoria/ Essa foi precedendo-se á victoria.” (estrofe XXXII). O autor faz então um balanço dos danos materiais e humanos, enumerando as perdas dentre oficiais e praças em cada embarcação. Entretanto a Parnahyba já em ação bombardeia a capitânea Taquary, quando então (estrofe XLIX): “Sem que cessem ainda os baldos tiros/ Os imigos canhões. Já d’impotentes/ Compassão seus estrondos; - poupão gyros/ Aos piões os rodízios reluzentes;/ Falha o soccôrro aos invasores diros,/ E o ar echôão vivas estridentes/ Da corveta, que viu suspensa a ordem/ De Garcindo, que os zoilos já não mordem.” Segue-se a perseguição à capitânea Taquary, que consegue escapar à ação da Armada brasileira.
Restava ainda a operação de inutilização dos salvados da Jequitinhonha, o que se faz por seis tripulantes da Parnahyba numa canoa sobre que “É de balas e fumo a tempestade/ Que assalta os navegantes; e troveja/ O bronze na barranca, onde a maldade/ Impotente nas iras esbraveja” (estrofe LVIII). Inobstante a carga a missão é cumprida, voltando os marinheiros a bordo sãos e salvos (estrofe LX). Percebe-se então a extensão do dano na Belmonte, encalhada para submeter-se a reparos. E assim “Dos estragos na cópia e nas grandezas,/ E no damno nos vasos vencedores./ Vendo o extremo a que forão reduzidos,/ Calcule quem puder o dos vencidos”. E prossegue no inventário do resultado do combate, agora quanto às forças contrárias: “D’estes apenas vê-se mergulhado/ Inteiro o casco do Jejuy desfeito;/ Paraguary também, que de abrasado/ o rio aclara, qu’inda tem sujeito/ Bom numero de chatas; e varado/ o Salto – e limpo e livre todo o leito dos navios contrários [...]”
No louvor da batalha o louvor da Nação:
Como os trechos acima transcritos dão breve noção, as quase oito horas da ba
talha que influenciaria decisivamente os rumos da campanha foram descritos por Pereira da Silva nos seus lances mais dramáticos. O autor não se furta a louvar o esforço do efetivo, registrando nominalmente as baixas, a quem homenageia no estilo grandiloquente característico da forma literária de que se trata. Não seria caso para menos, à vista dos tremendos sacrifícios que se verificaram naquele dia.
Se o exame da repercussão do feito entre a população refoge, até mesmo por limitações de espaço, ao escopo deste texto, no entanto podemos sublinhar a ideia que perpassa o poema que é, em síntese, a de que sob os soberanos magnânimos da Casa de Bragança deu-se o encontro das raças, desenvolvendo-se uma nação livre (dos colonizadores) e gloriosa. No entanto, persistia a nódoa social (como à instituição se refere o autor): a escravidão. Ferida a guerra, tão bravos e imprescindíveis para o sucesso da nossa causa os ex-cativos como todos os demais que tomaram parte da batalha, e a questão agora era de ter em conta não somente por motivos humanitários. Fato é que de 1868 em diante a ideia de eliminar do meio social a dita nódoa tomaria ainda mais corpo, como se sabe largamente.
Deixando então os simbolismos subjacentes ao texto, e relembrando os homens que tomaram parte ativa nos acontecimentos, transcrevemos como conclusão a sexta estrofe do último Canto do poema, quando a reação denodada do efetivo começava a tornar possível o resultado memorável:
“Para jamais morrerem deslembrados
Repete a fama á virgem altos feitos
E os deixa eternamente registrados
Entre aquelles que vivem nos conceitos,
Dos sec’los e do mundo celebrados;
Como as leis, os costumes, sãos direitos,
Que dourão o porvir do povo nobre,
Que habita as plagas que o Cruzeiro cobre.”
(publicado na Revista Direito Militar n. 141, Jan/Jun 2020)