É interessante notar a relação da cidade de Vitória com as Letras. Academias de Letras, Grêmios Literários, grupos de escritores e ultimamente de leitores floresceram e florescem por aqui, como contraponto à conhecida falta de interesse pelos livros e pela cultura em geral, infelizmente uma tendência contemporânea e não só no nosso querido “Brasil, país de todos”. No site de relacionamentos Facebook fui incluído ultimamente num grupo chamado “Que livro você está lendo”; de uma consulta ao site Tertúlia Capixaba (www.tertuliacapixaba.com.br), do escritor Pedro J. Nunes, relembro grupos de leitores que por aqui havia, em matéria do Jornal A Gazeta, de 8.06. 2006, intitulada “Com versos, encontros e aquela prosa”.
Entre nós desde a fundação em Vitória da Biblioteca Pública Estadual, em 1855, com a iniciativa de Brás da Costa Rubim – ou, melhor dizendo, desde sua reorganização, em 1880, pelo presidente da Província Eliseu de Souza Martins - temos alguma espécie de dados dando conta do interesse pela leitura dos habitantes e visitantes da cidade. Na palestra que realizou sobre os 157 anos de fundação da Biblioteca Pública Estadual, o escritor Reinaldo Santos Neves chamou a atenção para os relatórios de usuários dos serviços da instituição que, desde 1880, começaram a integrar os relatórios dos presidentes da Província. Este fato atesta a importância que a instituição foi passando a ter a partir dos anos oitenta do século XIX e serve para mostrar a presença, entre nós, de letrados e de interessados na leitura naqueles tempos provinciais, tratados na historiografia local e externa de forma tão pouco lisonjeira para o Espírito Santo.
Mas a fundação da Biblioteca Pública não foi, cronologicamente, o primeiro passo na “ilustração”, por assim dizer, dos vitorienses: já em 1840 o Alferes Ayres Xavier de Albuquerque Tovar trouxe para aqui a nossa primeira tipografia, com o objetivo de publicar um jornal oficial. Os fatos são bem conhecidos: sob a direção de José Marcelino Pereira de Vasconcelos foi impresso um único número de O Estafeta. Com a morte de Tovar, em 1841, o maquinário permaneceu inativo, até sua venda a Pedro Antônio Azeredo. Este se tornou o precursor da imprensa capixaba ao iniciar a publicação, em 17 de janeiro de 1849, do Correio da Victória, periódico bissemanário que circularia entre nós por vinte e quatro anos, sob a direção de José Marcelino Pereira de Vasconcelos.
É do mesmo José Marcelino a iniciativa da publicação do primeiro livro, entre os até hoje localizados, editado em terras capixabas: o 1.º volume do Jardim Poético, de 1856 (de que a Academia Espírito-santense de Letras fez publicar uma 2.ª edição em 2008, mediante convênio com a Prefeitura Municipal de Vitória). Embora, registre-se, o primeiro autor capixaba publicado de que se tem notícia seja Manuel de Andrade Figueiredo, calígrafo do Reino, que em 1722 publicou em Lisboa Nova Escola para aprender a ler, escrever & contar, de que a Academia Espírito-santense de Letras também fez tirar uma 2.ª edição (talvez a primeira edição brasileira) em 2008. Da primeira edição do Jardim Poético guarda hoje a Biblioteca Pública Estadual um exemplar, dentre os outros tantos que deve ter possuído nos seus anos iniciais de funcionamento.
Ao incansável José Marcelino Pereira de Vasconcelos devemos a cogitação inicial do registro dos esforços literários havidos entre nós. Do frontispício do Jardim Poético colhe-se esta sua preocupação, que lhe animava as intenções:
“Desde o descobrimento desta parte do Império que muitos Gênios hão de ter nascido, vivido debaixo de sua atmosfera, e morrido com o fruto de suas lucubrações [...] como poderemos ter glória por este modo? Como poderemos representar nos futuros séculos um importante papel entre os literatos brasileiros, deixando cair em olvido, concorrendo mesmo para se esvaecerem tão interessantes documentos?”
À visão de José Marcelino se deve o fato de uma pequena parcela da produção dos contemporâneos espírito-santenses não ter tido outro destino e poder ser conhecida por nós, pelo público leitor de hoje.
Mas nisto de publicação, como registrou o Acadêmico Renato Pacheco no breve texto “Introdução à História do Livro Capixaba”, que integra seu Estudos Espírito-santenses, publicado em 1994 pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, autores locais publicavam fora daqui. Cite-se, por todos, ainda José Marcelino Pereira de Vasconcelos, nosso mais prolífico escritor da época e sem dúvida a personalidade mais marcante daqueles inícios da produção gráfica capixaba, que teve obras de grande importância publicadas pela editora dos irmãos Laemmert, do Rio de Janeiro. Exemplares hoje muito raros de seus Ensaios sobre a história e estatística da província do Espírito Santo, aqui publicado em 1858, do Roteiro dos Delegados e Subdelegados de Polícia, Manual dos Juízes de Direito, o próprio Jardim Poético, compõem os acervos de obras raras da Biblioteca Pública Estadual, do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e da Academia Espírito-santense de Letras.
A consolidação da imprensa no Espírito Santo na segunda metade do século XIX e o interesse que despertavam as disputas políticas nas páginas dos órgãos oficiais dos partidos, na capital e no interior, sem dúvida incrementavam o interesse pela leitura. A fundação do primeiro grêmio lítero-científico do Espírito Santo em 1916, o Instituto Histórico e Geográfico, contribuiu para consolidar a canalização dos esforços dos letrados locais contemporâneos. Aos quadros do Instituto Histórico e Geográfico pertencia a maioria dos fundadores da Academia Espírito-santense de Letras, cujo pontapé inicial, em 31 de julho de 1921, se deu no Clube Bohemios, onde estava instalada a sede do Instituto.
No período de inatividade da Academia de Letras, entre 1925 (última reunião registrada em ata) e 1937 (ano da convocação dos demais remanescentes pelo Acadêmico Arquimimo Martins de Matos) floresceram em Vitória algumas associações literárias, registrando Elmo Elton no estudo introdutório ao Patronos e Acadêmicos a Academia Espírito-santense de Novos e o Grêmio Rui Barbosa. Com a reorganização da Academia Espírito-santense de Letras naquele ano, muitos dos integrantes dos dois grêmios passaram a ocupar cadeiras no sodalício maior.
Como uma instituição voltada ao cultivo das letras, a história da Academia Espírito-santense foi enriquecida pela doação à Casa da biblioteca pessoal do Acadêmico Álvaro Henrique Moreira de Souza, Saul de Navarro, em 1947. Navarro era leitor consciencioso e de seu acervo fazem parte exemplares diversos em francês, espanhol e inglês. A formação do acervo é, aliás, uma das preocupações da nossa Academia: nas atas das reuniões naqueles anos iniciais consta o registro de cada título que lhe era doado, sendo o primeiro registro, na reunião de 25 de setembro de 1923, de um exemplar da Revista da Academia Brasileira de Letras.
Homem de Academia, a Brasileira, é o autor do livro que mais divulgou as coisas do Espírito Santo no meio literário, livro este que agora em 2012 completa cento e dez anos de publicação: o Canaã, de Graça Aranha, obra inspirada ao jovem Juiz Municipal do Porto de Cachoeiro de Santa Leopoldina pela acusação de infanticídio contra a imigrante de origem alemã Guilhermina Lubke. O incidente com a Maria Perutz do livro é pano de fundo para a discussão de ideias sociológicas então em voga. Ademais disto, o Canaã é importante representante do chamado “romance de imigração” no Brasil.
A obra máxima de Graça Aranha inspirou ao Acadêmico Augusto Lins dois títulos em que demonstra seu afinco no estudo do romance, o Variações Estéticas do Canaã, cuja segunda edição, de 1981, dedicou à Academia Espírito-santense de Letras, “com gratidão e respeito” e do monumental Graça Aranha e o Canaã, de 1967, dedicada à Academia Espírito-santense de Letras e à Arcádia Espírito-santense, que integrara. É neste último livro em que, ao prefaciá-lo, o ministro Renato Almeida constata que o Espírito Santo:
“foi o grande personagem do Canaã, criado com o fascínio e o deslumbramento da natureza, com todas as implicações filosóficas do seu panteísmo, que integra a terra no livro; foi o homem que ali vivia a tragédia do subdesenvolvimento e o que veio do estrangeiro com suas doutrinas adequadas ou conflitantes com o meio; foi o complexo social em que se fundiam formas diferentes de um Brasil que se miscigenava, aculturava e reinterpretava; foi o quadro de uma sociedade em formação na variedade de figuras e aspectos, foi, em suma, a ecologia natural, social e humana que fez do Espírito Santo o personagem central do livro, e lhe polarizou a ação, o lirismo e a dinâmica”.
O livro de Graça Aranha inspirou ao Acadêmico Renato Pacheco seu Fuga de Canaã, de 1981, onde o autor “redescobriu Santa Leopoldina (o ex-Porto do Cachoeiro do autor maranhense) setenta anos depois, quando a região [...] já se encontrava decadente” (da orelha do livro). Foi Renato Pacheco, sucessor de Augusto Lins no gosto pelo estudo do Canaã, quem prefaciou uma edição no centenário da publicação da obra, em 2002.
Num arroubo, Graça Aranha rompeu com a Academia Brasileira de Letras em apoio à florescente estética modernista; para José Lins do Rego cobriu-se de ridículo naquela passagem (apud TATI, Miécio. Jorge Amado: Vida e Obra. Belo Horizonte, Itatiaia, 1961, p. 10). Renato Pacheco, Acadêmico e Presidente de Honra do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, permeava suas atitudes de uma boa dose de iconoclastia. Ambos, de alguma maneira, simbolicamente buscando despregar-se da ideia ridícula e ainda hoje enraizada de distanciamento das Academias de Letras do público, de uma autocultuação ensimesmada e solitária dessas Casas literárias. Ambos procuraram, de alguma forma, misturar-se aos leitores – e não só àqueles que canalizam a leitura direcionando-a à produção literária. Ponto este onde voltamos ao exemplo dos grupos de leitores citados no texto do jornalista Clodomir Bertoldi para o jornal A Gazeta, de 2006, referido acima.
Dos grupos ali retratados merece menção o mais longevo e justamente aquele que não apresenta perfil definido: não é exclusivamente de leitores nem é exclusivamente de escritores. Ali todos leem e todos escrevem. E todos têm ciência de que, para bem escrever, é preciso ler. Para o escritor Luiz Guilherme Santos Neves existe entre os frequentadores do Sabalogos um “verniz literário” que os une, no convívio das manhãs de sábado na Livraria Logos da Praia do Suá, em Vitória. Dessa tertúlia, já vintenária, diz o mesmo Luiz Guilherme Santos Neves ser sucessora no tempo das reuniões de intelectuais que aconteciam na Livraria Âncora, na Rua Nestor Gomes, no centro de Vitória.
Sabalogos é expressão cunhada pelo Acadêmico Renato Pacheco, entusiasta frequentador das tertúlias até o seu falecimento, em 2004. Trata-se de um trocadilho juntando o termo sabadoyle (as famosas reuniões realizadas, no Rio de Janeiro, na residência do advogado e bibliófilo Plínio Doyle) ao da livraria que desde sempre acolheu os tertulianos capixabas. Ali, no recanto que hoje leva o nome de Renato Pacheco, reúnem-se os escritores/leitores, para folhear e discutir novidades livreiras e também do cotidiano.
Se atualmente Vitória encontra-se razoavelmente munida de livrarias, nem sempre foi assim. E depois que passou a sê-lo, havia o problema do preço do livro, que é problema recorrente. E dele fala José Carlos Oliveira em crônica intitulada “Livros Velhos”, publicada no jornal A Tribuna de 27.10.1951 e reunida por Jason Tércio em José Carlos Oliveira – o rebelde precoce: crônicas da adolescência, publicado pela Gráfica Espírito Santo em 2003:
“No sebo da Rua Gama Rosa, incompreensivelmente o único de Vitória, comprei nove cruzeiros e cinquenta centavos de literatura. Essas casas de livros velhos são uma necessidade; ali os rapazes pobres podem comprar bons livros por pouco dinheiro, formando uma biblioteca humilde, mas decente”.
Retrato de uma época, infelizmente nem assim tão distante.
O fato é que a preocupação com a produção literária local, mas também com o seu consumo, a leitura, entre nós, permeia a história da Academia Espírito-santense de Letras. Do seu engajamento na campanha para dotar cada município capixaba de uma biblioteca, que se pode ler das atas das reuniões na década de 40 do século XX, aos estudos de Acadêmicos a respeito, não por coincidência dois presidentes da Casa: Francisco Aurélio Ribeiro, que na Revista comemorativa ao 81.º aniversário da Academia Espírito-santense de Letras, de 2003, publicou o texto “Para que ler os capixabas”; e Gabriel Augusto de Mello Bittencourt, que na edição da Revista comemorativa ao 85.º aniversário da Academia, de 2006, publicou “A Historiografia Capixaba e o problema da publicação”.
O fato é que a leitura, hoje, não se faz apenas no livro, no suporte físico papel; sua evolução passa inevitavelmente pela interação do leitor com a internet. Livros eletrônicos (ainda incipientes), jogos on-line e redes sociais devem, sim, ser aproveitados por autores e editores, porque existe um público a isto predisposto e não parece fácil introduzir alterações num hábito de consumo que já se consolida.
Hoje a maioria dos municípios do Espírito Santo tem biblioteca pública, o que é animador. Mas qual será o estado de suas instalações? De seu acervo? Receberá a instituição a devida atenção do Poder Público? Estará munida de equipamentos digitais, que possibilitem o acesso às novas formas de consumir cultura? Uma instituição como a Academia de Letras, cujos integrantes, de alguma maneira, são produtores de cultura, deve se ocupar também de como essa produção chega até ao destinatário.
Voltando ao início, historicamente existe uma predisposição local para as iniciativas voltadas às letras. Será que, os que nos preocupamos com isso, estamos sabendo aproveitá-la?
(Publicado no número de 2012 da Revista da Academia Espírito-santense de Letras, p.42/46)