1 de abril de 2022

Ana Néry, a "mãe dos brasileiros" na Guerra do Paraguai


 A deflagração de uma guerra, é fato inconteste, afeta profundamente a população das nações envolvidas, cobra a todos pesados sacrifícios para suportar as exigências de manter em movimento engrenagens excepcionais e temporárias, mas extremamente exaurientes, de recursos e de forças humanas. Nestas ocasiões costumam sobressair o engenho e a tenacidade de pessoas e grupos, não só em matéria de planejamento e logística, como também do desenvolvimento de soluções para problemas surgidos de forma muitas vezes inesperada e dramática, e que devem ser devidamente equacionados, sob pena de consequências indesejáveis. Paralelamente a isto, sobressaem os esforços individuais, os atos de abnegação, de coragem e de heroísmo que, exigidos de cada um pelas circunstâncias, revelam a substância de que cada qual é feito.

Como experiência social, portanto, a guerra historicamente envolve populações inteiras, que suportam invasões de territórios ou que se deslocam juntamente com os exércitos em movimento, em busca do objetivo almejado. À mobilização coordenada de esforços industriais, em sentido amplo, e humanos, no sentido mais dramático, se chama esforço de guerra, e é circunstância a se ponderar na fase do planejamento das ações. Já com relação ao desenrolar do conflito pode-se usar da expressão, como exercício bem-intencionado de uma espécie de licença poética, para referir os feitos de armas e a atuação individual notável, geralmente de personagens esquecidas nas ordens do dia e nos boletins de comando. 

 

É, aliás, o sentido em que a expressão é empregada neste texto, que toma como inspiração o volume Episódios Militares, de autoria do General J. S. de Azevedo Pimentel[1], combatente e cronista do que foi o maior conflito armado travado na América do Sul: a Guerra da Tríplice Aliança. Iniciada, como se sabe, pela ação paraguaia em 27 de dezembro de 1864 contra o Forte de Coimbra, só se encerrou a 1. de março de 1870, com a morte do presidente paraguaio Solano López em Cerro Corá. Durante os pouco mais de cinco anos de conflito, o esforço de guerra suportado pelo Império do Brasil, isso nos dois sentidos, o técnico, propriamente, e aquele outro que assinalei acima, foi sem dúvida tremendo.

 

Aqui interessam-nos fatos ocorridos naquela campanha e referentes a ações individuais meritórias. Fixar-nos-emos, ainda que brevemente, sobre atuação individual de grande valor, bastante conhecida, devidamente reconhecida e ainda hoje considerada, de uma mulher que vivenciou da forma mais dramática aquele conflito. 

 

Para acercarmo-nos do objeto de abordagem, socorramo-nos das ideias do autor referido acima, que, como dito, atuou no campo e deixou registros de fatos e de caracteres julgados dignos de tanto, a seus olhos de soldado calejado. Como bom comandante, exaltava ações meritórias, lamentando a fortuna de alguns que viu em ação, de cujos nomes não se guardou registro, a seu ver injustamente. 

 

Relembrando esses trabalhos dignos de nota, refere o autor casos de mulheres combatentes, de que citaremos dois: o primeiro, de Maria Curupaiti, de quem diz: “O Brasil teve uma heroína na maior extensão do vocábulo. Chamava-se Maria Francisca da Conceição” - e passa a desfiar a história da jovem que, apesar da proibição superior, disfarçou-se de homem e seguiu na peleja o marido, afinal morto em combate[2]. O segundo, de uma Florisbela, que atuou como soldado na frente de batalha e nos hospitais de campanha, quando “marcava seu lugar à cabeceira dos doentes”, e sobre quem o autor conclui: “a essa heroína do Paraguai também cabe a honra de figurar na história”[3] [4].

 

Prossegue a argumentação, comparando a fortuna da última com a do vulto feminino notável que é o objeto do estudo aqui. E assim, para o fim de finalmente apresentá-la, retornemos a palavra ainda uma vez a Azevedo Pimentel:

 

D. Ana Néri, em cenário diferente, exercia a nobre missão de seu sexo. Era a caridade e a paz. Era a viúva honrada que espargia pelos necessitados tudo quanto a bondade de um coração maternal é capaz de fazer por um filho. Muitas vidas salvou com seus desvelos e carinhos. Estava envelhecida no serviço da Pátria.[5]

 

E prossegue:

 

A Pátria, porém, cobriu-a com o manto da sua gratidão.

Pagou a dívida, e ela, sem nada exigir, sempre heroica, manteve-se na altura de seu caráter. Sempre bondosa e digna, como brasileira ilustre que era.[6]  

 

Quem foi, afinal, essa mulher a quem chamamos vulto notável, que granjeou por sua atuação tamanha consideração e cuja fama permanece viva nos nossos dias? Vejamos então, em brevíssimas pinceladas. 

 

São dados mais do que correntes que Ana Justina Ferreira Néri nasceu na Bahia, em 1814, tendo-se casado aos 23 anos com o capitão de fragata Isidoro Antônio Néri. Seis anos depois enviuvou e passou a cuidar sozinha dos três filhos, um deles seguindo a carreira militar e os outros dois abraçando a medicina. 

 

Nesse ponto é que sua vida é dramaticamente trespassada pelos acontecimentos, alcançando-a em cheio o grande conflito: os filhos e outros parentes engajam-se nos Corpos de Voluntários da Pátria e partem para os campos de batalha do Paraguai. É, portanto, em virtude desse fato que tomará a resolução que marcará a sua vida, solicitando permissão ao presidente da província para acompanhar os combatentes, oferecendo serviços de ajuda aos feridos em combate.

Acima ficou dito que por ocasião de conflitos bélicos costuma aflorar o engenho humano na elaboração de soluções para os dramáticos problemas a serem equacionados. Um dos campos cujo desenvolvimento foi exigência direta das necessidades surgidas em conflito foi a Enfermagem. De fato, é dado aceite sem maiores hesitações que a moderna enfermagem foi iniciada por Florence Nightingale, reformadora social e escritora inglesa, que se destacou como chefe e treinadora de enfermeiras durante a Guerra da Crimeia (1853 – 1856). Logo depois, em 1860, Nightingale organizou em Londres uma escola de enfermagem no Hospital Saint Thomas, lançando as bases da enfermagem profissional. O dia mundial da Enfermagem, 12 de maio, é o dia do seu nascimento.    

  

Retornando a Ana Néri, fadada a trilhar caminhos semelhantes e tão pouco tempo depois de Nightingale, vejamos o ânimo que a movia naqueles dias do início do conflito, pela transcrição da carta que remeteu ao presidente da província da Bahia, o Dr. Silva Dantas: 

 

Ilmo. exmo. sr. Tendo já marchado para o Exército dois de meus filhos, além de um irmão e outros parentes, e havendo-se oferecido o que me restava nesta cidade, aluno do 6. ano de medicina, para também seguir a sorte de seus irmãos e parentes na defesa do país, oferecendo seus serviços médicos – como brasileira, não podendo ser indiferente aos sofrimentos dos meus compatriotas e, como mãe, não podendo resistir à separação dos objetos que me são caros, e por uma longa distância, desejava acompanhá-los por toda parte, mesmo no teatro da guerra, se isso me fosse permitido; mas, opondo-se a este meu desejo a minha posição e o meu sexo, não impedem, todavia, estes dois motivos, que eu ofereça os meus serviços em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul, onde se façam precisos, com o que satisfarei ao mesmo tempo os impulsos de mãe e os deveres de humanidade para com aqueles que ora sacrificam as suas vidas pela honra e brio nacionais e integridade do império. Digne-se v.exa. de acolher benigno este meu espontâneo oferecimento, ditado tão somente pela voz do coração.[7]

 

O mandatário aquiesceu a tão desprendido oferecimento, fazendo-o nos termos seguintes: 

 

Aceito, pois, tão espontâneo oferecimento, e vão ser expedidas ordens ao conselheiro comandante das Armas, com quem se entenderá v. m. para ser contratada como primeira enfermeira e brevemente seguir para o Rio de Janeiro.[8]

     

Deixou a Bahia em agosto de 1865, partindo para o Rio Grande do Sul e daí para o teatro de operações, onde passou a construir e dirigir hospitais de sangue para socorro dos feridos de guerra. Atuou por todo o tempo do desenrolar do conflito, sempre na linha de frente, em Salto, Corrientes, Humaitá, Assunção... No mesmo texto do jornal Diário Carioca de onde se transcreve a correspondência com o presidente da província da Bahia consta citação de uma legenda envolvendo a “voluntária da caridade”, e que para dar ideia de seu valor vai reproduzida como lá aparece:

 

Conta-se que ‘certo dia, entre os mortos e feridos transportados ao acampamento Ana Néri encontra o cadáver desfigurado de um dos seus filhos, que morrera em combate. A valorosa dama, recalcando no âmago do coração a dor que o lacerava, não deu mostras de fraqueza e continuou a prestar socorros aos que deles necessitavam – soldados brasileiros, argentinos e paraguaios, como também as viúvas e órfãos da guerra’.[9]

 

Encerrado o conflito, acompanharam-na na volta dos campos paraguaios a consideração e o prestígio traduzidos nas palavras registradas na obra de Azevedo Pimentel. Quanto ao “pagamento da dívida” pela Pátria coberta de gratidão, de imediato foram-lhe oferecidos presentes da parte do povo da sua província e de senhoras baianas residentes no Rio de Janeiro, teve o retrato pintado a óleo em tamanho natural pelo genial Vitor Meireles, batizou com seu nome uma das ruas da capital do império e recebeu do governo imperial uma pensão anual, além das medalhas “Humanitária” e de “Campanha”. 

 

Como ocorrido com Florence Nightingale, o exemplo de liderança de Ana Néri, somado ao fato do desenvolvimento por ela de práticas inovadoras, levaram a que, 46 anos depois do seu falecimento, ocorrido em 1880, fosse batizada com seu nome a primeira escola de enfermagem do Brasil, que havia sido criada em 1923.

 

No desespero dos hospitais de campanha, na cabeceira dos leitos dos feridos, aquela que foi chamada “mãe dos brasileiros” tratava aos soldados por “seus filhos”. Cento e cinquenta anos passados, as palavras de Azevedo Pimentel sem dúvida ainda se aplicam: de Ana Néri permanece indelével a memória.


[1] PIMENTEL, J. S. de Azevedo. Episódios Militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1978. O autor, natural de Rio Formoso/PE, foi o primeiro na sua cidade a se alistar nos Corpos de Voluntários da Pátria. Percebido pelo comando o seu nível intelectual, foi imediatamente promovido a segundo sargento. Retornou da campanha como capitão, tendo chegado a general honorário pelos bons serviços prestados ao país.  

[2] PIMENTEL (1978, p. 149-150)

[3] PIMENTEL (1978, p. 20)

[4] Relembre-se que as mulheres sempre estiveram presentes nas guerras, acompanhando familiares, ou como vivandeiras, ou como enfermeiras, ou – como cada vez mais posto em destaque – como combatentesSobre o último tema refiram-se, a título de exemplo: CAIRE, Raymond. A Mulher Militar: das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2002; NASH, Mary & TAVERA, Susanna. Las Mujeres e las Guerras: El papel de las mujeres en las guerras de la Edad Antigua a la Contemporanea. Barcelona: Icaria, 2003; JONES, David E. Women Warriors: a history. Dulles: Potomac Books, 2005; VALCÁRCEL, Isabel. Mujeres de armas tomar. Madrid: Algaba, 2005.      

 

[5] PIMENTEL (1978, p. 20). 

[6] Idem

[7] PALHA, Américo. Ana Néri. Diário Carioca, edição 05490, 19/01/1946, pág. 7.   

[8] Idem

[9] idem