20 de abril de 2015

Breves notas quase-literárias (VII): Recordações do futebol de Vitória, de Ivan Borgo


Não se sabe até quando, não se sabe mesmo se vinga, o fato é que o Rio Branco Atlético Clube vem fazendo bela campanha no campeonato estadual deste ano da Graça de 2015. O centenário clube de Jucutuquara, desterrado sem dó nem piedade para Campo Grande, despejado depois uma segunda vez da sua casa, mas que do alto de sua história um tanto sombria permanece como o maior ganhador de títulos do futebol capixaba.

Jucutuquara, berço da agremiação, é terra de nobres, o barão de Monjardim era o proprietário de tudo aquilo nos idos do século XIX; é terra de samba, o Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Unidos de Jucutuquara ali se criou e se fez grande; é terra de escritores, José Carlos Oliveira, o Carlinhos Oliveira, o Precoce, foi criado ali. Minha avó paterna, minha bisavó materna, a circunstância da localização das residências das duas me permitiu, e muito, o vaguear vagabundamente pelo bairro, quando mais novo. Bons tempos.

Mas o Rio Branco é dali de Jucutuquara; o quase lendário Estádio de Zinco, cuja foto o Álvaro José Silva cedeu para ser reproduzida na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, foi a certa altura a única casa própria de um clube capixaba. O que levou os rivais alvianis do Vitória Futebol Clube – aliás, meses mais antigo que o alvinegro de Jucutuquara – a trabalhar duro para construir também a sua.

Velhas histórias do futebol de Vitória, que de quebra teve um campeão ficado pelo caminho, o saudoso, extinto, Santo Antônio Futebol Clube; velhas histórias relembradas nestes novos tempos em que há muito despontou a ex-associação dos ferroviários da Companhia Vale do Rio Doce, temível rival do esquadrão capa preta.

A propósito de quê tudo isso, já vos digo: é que tive o prazer de prefaciar a terceira edição das Recordações do Futebol de Vitória, agora assumidas pelo próprio Ivan Borgo (as duas primeiras foram assinadas pelo heterônimo Roberto Mazzini). No livro, o autor desfia suas memórias de jovem torcedor do Rio Branco Atlético Clube, quando as tardes de futebol eram praticamente a única opção de lazer. Vai daí que as arquibancadas do Estádio Governador Bley, quase um quintal da sua casa, tornam-se privilegiado posto de observação, em que usos e costumes da época ganham vida, de maneira leve e divertida no texto de Ivan.

Como fiz constar no prefácio, o foco do autor não é no enumerar feitos esportivos, embora constem partidas memoráveis, e não só entre clubes capixabas. O propósito do autor é relembrar, com gosto juvenil, coisas de uma cidade que não existe mais, a não ser nas memórias privilegiadas que sua pena nos concede. E assim permitir que nós próprios formemos ideia daquelas tardes de futebol, quando ao pretexto da bola rolando se testemunhava era o palpitar da vida da cidade.

7 de abril de 2015

Breves notas quase-literárias (VI): Miguel Marvilla


Noite dessas (registrei na memória, foi de uma terça para quarta-feira), sonhei com Miguel Marvilla. Amigo, poeta, mordaz, Miguel Marvilla. Suas qualidades de escritor e de poeta escusam ser enumeradas. É de referir, apenas, que nos anos 80 integrou o Grupo Letra, de Vitória, juntamente com outros pesos-pesados de mesmo calibre: Renato Pacheco, Reinaldo Santos Neves, Marcos Tavares, Luiz Busatto, Oscar Gama Filho, José Augusto Carvalho.

Mas o sonho. No sonho, sonhava eu com o Miguel e ele, barba por fazer, me dizia algo, por detrás dos óculos que concorriam para aquele olhar profundo, e eu atinei num trecho em que ele falava normalmente, como se na continuação de uma narração. Por isto mesmo é que, ao que pareceu, palestrávamos.

Ao que pareceu, porque eu não ouvia o que Miguel falava. Via-lhe os lábios se movendo no modo mesmo de articular palavras, tinha consciência de que palavras eram articuladas por ele, mas eu não as distinguia. E por isto mesmo, contando essa passagem a amigos, alguém sugeriu que talvez a circunstância fosse vantajosa, arrematando – “assim você pode imaginar um diálogo com ele”.

Pois. E depois, pus-me a imaginar o que poderia querer me dizer: estaria, por acaso, marcando a nossa ida ao Guaramare, do Vicente Bojowski, que, como amigo do proprietário, ficou de me convidar e ficou me devendo, ao descaradamente nos faltar de uma hora para outra? Estaria cobrando minha ausência na sua "despedida" - eu, que não conhecia a localização de onde ele foi sepultado (sequer sabia que o município de Cariacica era tão provido de cemitérios), e depois de visitar outros, numa angústia crescente, não consegui chegar a tempo de falar-lhe última vez? Ou estaria tecendo comentários sobre a minha eleição para a Academia Espírito-santense de Letras - ele, acadêmico, que belo dia, num Sabalogos, declarou, sem nunca termos conversado antes, que fazia questão de ir à Academia, de onde estava afastado, para votar em mim?

É, Miguel, sua partida atabalhoada deixou assuntos para acertarmos, e não são poucos. Exemplo: sua faceta religiosa, o conhecimento pessoal com prelados da Igreja Católica, que acabou culminando na sua dissertação de mestrado, uma faceta para mim tão interessante quanto a sua poética, e que nunca mais poderei explorar. Me dou conta de tantos assuntos ficados assim, pelo meio, já que ficamos, nossa amizade, também ela pelo meio do caminho. Enfim.

Seja generoso com este amigo mais uma vez, Miguel, e do alto do seu elevado senso poético receba estas linhas, traçadas dia seguinte à onírica experiência que deu pretexto a essa digressão:

Eu sonhei com o Marvilla.
Sonhar com poetas talvez não aflija
Porque lh’ ignorem a pena precisa
Talvez não lhes venham à mente os achados
Perdidos no tempo, que o poeta busca,
E apara e registra
E que nos ficam pra sempre.

Sonhar com poetas pode não fazer sentido.
Marvilla, outrossim, sentia; e ao fim
E ao cabo, teus sonhos não medrarão,
Miguel, em seara inculta:
Sonhar com poetas, a fala de esteta,
Possa ser coisa capaz de emoção.
Bem haja aonde vá, lembrança do amigo, e
Dos ditos perdidos
Nos fique intenção.