20 de março de 2013

Reflexões sobre Ética profissional para novos bacharéis em Direito



Como profissional do Direito, de uma família de profissionais do Direito, que vive o Direito no dia-a-dia e que dele, ou melhor, da sua prática, tira o seu sustento, procuro, inspirado nos exemplos mais próximos que tenho, pautar minha atuação pela ética, por acreditar nas boas normas de conduta, de convivência, como remédio para a maior parte dos dilemas que nos afligem nos nossos dias.

Paulo de Tarso, um dos pilares da civilização ocidental, diz na Primeira Epístola aos Coríntios que “tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (6; 12). Por que iniciar uma argumentação com citação que se pode considerar “religiosa” (já que retirada da Bíblia) em tempos que se diz serem laicos, racionalistas - e aqui deve-se fazer um parêntese - como se a religião, a contrário da fé, não fosse produto da razão?

Primeiro porque, sem dúvida, esta é uma verdade universal. Mas principalmente porque acredito que não temos, esta nossa geração, o direito de abrir mão da herança que nos foi legada em mais de dois mil anos de civilização. A dialética necessária à evolução da vida, dos costumes, o exercício das convicções que opõem liberais a conservadores, que para muitos é o motor da História, não pode ser confundido com a simples anomia, simplesmente porque a falta de regras de conduta, mínimas que sejam, instalaria a barbárie.

E, no entanto, o que vemos hoje? A tentativa de ridicularização da religião, a relativização da moral. Se retornarmos às páginas de Eugen Erlich, nos seus Fundamentos da Sociologia do Direito, veremos que o Direito Penal, este sistema penal como está erigido hoje em dia, foi concebido para atuar por amostragem. Ninguém pretendeu, ao vir sendo construído o sistema, que se punissem todos os delitos cometidos; pretendeu-se, como é cediço, que uma eventual punição servisse para dissuadir os demais da prática de delito semelhante.

O problema é que em tempos idos, quando o criminoso, o infrator, era mal visto por todos, a dissuasão ocorria, em grande parte, com base na reprovação social. O que hoje em dia não é assim, por conta justamente da falada relativização dos costumes. A dissuasão ocorria, em grande parte, com base na sanção em outras esferas de punição, por exemplo, a religiosa. O que hoje em dia não é assim, por conta da falada tentativa de ridicularização da religião.

Mas de que estamos falando? Um exemplo prático, para que se possa entender melhor: como sabemos o servidor público, no exercício de suas funções, pode cometer um crime ou uma falta disciplinar, e assim pode vir a ser punido em duas esferas distintas. O servidor militar, por sua vez, tem mais uma: pode ser punido por crime comum, por falta disciplinar e também por crime militar, sendo julgado por este último num ramo especializado da Justiça, como determina a Constituição Federal. Mas o cidadão comum, que a princípio não tem nenhum vínculo com o Estado e assim não comete faltas disciplinares, cometia faltas, pode-se dizer assim, contra a sociedade, e essas faltas eram de caráter moral ou religioso. É justamente isso que vem deixando de acontecer ultimamente, por conta da relativização dos costumes. O que é ruim, no mínimo, porque a sociedade está acima do Estado organizado. O que se vê é que, neste sentido, a sociedade vem se demitindo dessa sua responsabilidade, dessa sua atribuição de exercer uma parcela do controle social, entregando-a toda nas mãos do Estado organizado. À polícia, aos Tribunais. Aos burocratas, em geral.

Será isto desejável? No mínimo, é problemático, porque o Estado de Direito não foi pensado para tutelar de perto o cidadão. Este é um outro tipo de Estado, que todos dizem não querer, mas que hoje em dia parece vir sendo construído no Brasil, na prática. E do jeito que as coisas vão, as alternativas infelizmente parecem ser ou isto ou, então, enfrentar as consequências de uma sociedade sem freios. A anomia. A barbárie.

Não é intenção, na argumentação, se fazer de arauto do Apocalipse. No entanto, não há dúvida de que a fiscalização de uma atuação ética em todos os níveis é dever da sociedade, um dever de que ela não se pode demitir.

Ora, sem dúvida um dos problemas maiores do nosso tempo é justamente definir o que é ético, porque a já aludida relativização da moral (ideia recorrente nestas linhas) faz com que surjam várias éticas por aí. A ética como marketing, a exemplo das expressões “cidadania” ou “inclusão social”. Felizmente, no caso de categorias profissionais como são as profissões jurídicas, os preceitos éticos constam da legislação positivada, o que impõe sua observância sob pena de sanção estatal. É assim o Código de Ética da Ordem dos Advogados, a Lei Orgânica do Ministério Público, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Os que ingressam no serviço público devem ter em conta que a função primordial, o motivo de existirem essas categorias profissionais, é servir ao público. Ora, esses – os servidores e agentes públicos e políticos – têm toda uma legislação para balizar-lhes as condutas, os estatutos dos servidores de todas as categorias, onde, concluímos acima, incidem sanções estatais para coibir-lhes as faltas. Mas há também aqueles que se dedicam ao Direito como inciativa privada - o advogado que mantém escritório e é, sob vários aspectos, o baluarte do sistema da Justiça – e esses em muito maior número.

Ainda que, no caso dos profissionais do Direito, os tempos sejam outros, que litigar em Juízo tenha sido erigido, não se sabe por quem, a condição sine qua non para ser “cidadão” no Brasil, ainda que a propagandeadíssima judicialização da questão não seja a única forma de resolver um conflito de interesses, ainda assim os profissionais não se podem omitir. Não pode negar assistência jurídica o advogado a quem dela necessite, por imperativo ético, da mesma forma que não pode negar jurisdição o juiz a quem a procura, por imperativo constitucional.

Tenha-se em mente que escolher uma profissão jurídica é abraçar, como projeto de vida, o encanecer ajudando o Estado a fazer justiça. O que vale dizer, a amparar o órfão e a viúva, que é o mesmo propósito milenar de Hamurabi; a, muitas vezes, como o Prometeu Acorrentado, dar ao jurisdicionado não mais que uma esperança infinita no futuro, como único remédio contra o desespero.

A Justiça, sob muitos aspectos, se assemelha a um titã acorrentado, como o Prometeu da tragédia de Ésquilo, a se bater, muitas vezes, contra desígnios maiores, e isso é deveras frustrante. Fazer justiça, chegar o mais próximo dela quanto humanamente possível, é um ideal tão simples como pode ser formulado em “dar a cada um o que é seu”. Mas tão difícil, pesado, sombrio, como pode ser – e é, na prática - o viver o dia-a-dia da profissão. A ética, como repositório de princípios que levam ao Bem, é um paliativo para as frustrações da caminhada do profissional, que delas também se faz a caminhada do profissional do Direito, do que encanece nessa lida diuturna.

Deve-se, então, estudar a ética profissional, praticá-la. Vivenciá-la. O cidadão que procura o profissional do Direito - clientes, jurisdicionados, seja que função no sistema de justiça o profissional exerça - a princípio esse cidadão só terá a que se apegar a crença de que, por viverem as agruras, as belezas, as alegrias e tristezas do dia-a-dia da profissão jurídica, só por isto deve ele estar diante de um profissional do Bem. Assim é que o profissional deve ser, para cada um cidadão que o procurar, no mínimo uma esperança infinita no futuro.

Talvez a resposta a todas as questões éticas que se põem no exercício da profissão jurídica, como de resto no das outras profissões, seja procurar praticar o Bem na caminhada profissional, de molde a dar aos que o procuram, no mínimo, uma esperança, que seja, com sua atuação profissional. E lá na frente, já encanecido neste sistema de justiça tão cobrado hoje em dia, poder concluir que valeu a pena.

(Reflexões retiradas do discurso de paraninfo das turmas de Direito da Faculdade Castelo Branco de Colatina, em 14 de dezembro de 2012)

8 de março de 2013

Numerário (Crônica de Altair Malacarne)



O professor Altair Malacarne, que foi meu professor de português, relembra numa crônica os seus tempos de funcionário do Banco do Brasil pelo interior do Espírito Santo, na época da acomodação de divisas entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais. E faz menção a meu pai, seu companheiro de viagem.

Publico a crônica aqui, com a gentil autorização do autor:


"Naquele dia, ao final de mais um expediente bancário, naquela Colatina sempre senegalesca de 1965, o subgerente me chamou, foi reto e peremptório: ‘amanhã de tarde você mais outro funcionário vai fazer uma viagem para levar NUMERÁRIO na agência de Resplendor; não fala nada com ninguém’. Fiquei com vergonha de perguntar o que era NUMERÁRIO; afinal, eu dava aula de Português, mesmo enfrentando a má vontade do BB, que desestimulava o magistério.

No dia seguinte de tarde, me chamaram na tesouraria; nunca tinha entrado naquela casamata. Tinha u’a mala de couro pesada no chão. Daí a pouco chegou o Dr. Gélice Neves, dizendo que era meu companheiro; me disseram que não precisava pegar a mala: estava chegando um táxi com carregador para transportar o volume até a estação da Vale; nos entregaram algum dinheiro para a viagem e 2 revólveres carregados (o meu era um ‘COLT’ cavalinho); sentindo-me importante e seguro, rumamos para pegar o trem da noite que subia o vale do rio Doce.

Colocada a mala no bagageiro do ‘noturno’, tomamos assento e esperamos a partida do coletivo; foi quando perguntei ao Dr. Gélice:

-Você sabe o que tem dentro dessa mala?

- Numerário, dinheiro.

Fiquei cálido e mudo; abri um caderno de anotações das aulas do prof. José Leão e cuidei de estudar atentamente os assuntos marcados pra prova de fim de mês na FAFIC; o Gélice abriu uma pasta e passou a ler os processos do serviço jurídico regional do BB que tinha acabado de assumir. Reclamou: ‘O Paulo Herkenhof largou tudo enrolado; é tem casos ‘cabeludos’, em terrenos que foram do Espírito Santo e hoje são de Minas Gerais; e tem ate financiamentos políticos, sem a mínima garantia, com devedores em lugar incerto e não-sabido. Vou ter de encarar tudo.’

Chegamos era umas 9 da noite; arrumei um táxi que nos levou, e levou também a famigerada mala em busca da agência; o subgerente e o gerente Átila Sarlo Maia estavam à espera; entregamos o butim e o aviso de lançamento contábil. Procuramos logo um lugar para dormir e não foi difícil achar; só que as camas eram encimadas por um cortinado enorme: proteção contra o ataque de borrachudos, que já estavam voando em torno de nossas cabeças, zunindo como aviões de caça em plena guerra.

Acordei no dia seguinte na maior paz; o tênue véu foi um manto milagroso. Fui logo pra estação do trem e peguei o rápido que vinha de Governador Valadares; o Gélice ficou; a apostilha foi minha colega de retorno; aprendi bem as lições de Mestre Leão e o significado de mais uma palavra: NUMERÁRIO

am/19.07.2012"