30 de abril de 2012

A Criação do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo


Atendendo a convocação de Anthonio Francisco de Athayde, Archimimo Martins de Mattos e Carlos Xavier Paes Barreto – este último o orador da noite – vários nomes destacados da vida político-literária espírito-santense contemporânea se reuniram numa sala cedida para este fim pelo Congresso Legislativo do Estado do Espírito Santo e constituíram, a 12 de junho de 1916, “um grêmio destinado ao estudo do Estado, sob o ponto de vista moral e sob o ponto de vista material”, sendo proposto também pelo orador na ocasião “que a tal agremiação se dê o nome de Instituto Histórico e Geográphico do Espírito Santo” (1). Tratava-se, efetivamente, da fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, votado por seus idealizadores “ao estudo da história e geografia nacionais e especialmente do Espírito Santo” (2), fórmula anteriormente já consagrada no Estatuto do congênere pernambucano, o primeiro Instituto Histórico e Geográfico estadual.

Da ata de sua fundação vê-se que o Instituto capixaba era concebido da mesma maneira que os demais: sob os auspícios estatais e reunindo em seus quadros a elite dirigente local, composta de representantes do Governo do Estado, a quase totalidade dos desembargadores da Corte estadual, militares, clérigos, professores e profissionais liberais. Esta forma de concepção (que, aliás, não poderia ser outra a não ser a consistente no recrutamento das intelectualidades locais) determinou a forma de atuação também da Casa do Espírito Santo, fundada para criação e conservação de uma história local que à altura destinava-se à valorização da expressão da individualidade capixaba à nacional, de uma forma geral, e às vizinhas identidades estaduais, em particular.

Para entender esta afirmação, mister se faz resgatar o contexto no qual se dava a criação do IHGES nos idos de 1916. No ano seguinte, 1917, seria comemorado o primeiro centenário da Revolução Pernambucana de 1817, de caráter anti-lusitano e republicano e que congregou personalidades de todo o país pela causa da independência. Domingos José Martins, comerciante abastado, instruído e viajado, tinha sua naturalidade capixaba contestada pelos mais respeitados historiadores de até então, entre eles Varnhagen, Pereira da Silva, Tollenare e “o próprio vulto magestoso [sic] de Ruy Barbosa”, que o davam como baiano (3).

Era preocupação do futuro desembargador Carlos Xavier Paes Barreto, na ocasião fazendo um rápido inventário das tradições locais, que “tantas tradições e tantas riquezas não passassem quase obscuramente”; para tanto, propunha dar-se a conhecer “o corpo e a alma do Espírito Santo, isto é a sua geographia e a sua história” (4). A intenção era clara: a elite dirigente local havia de legitimar-se perante a ordem nacional pelo resgate da participação destacada de um capixaba no movimento que, herdeiro da abortada conjuração mineira de fins do século XVIII, fez a ponte entre esta e o vitorioso movimento que culminou em 1822, por um lado, e o que desaguou na mudança de regime, por outro. Assim, o capixaba Domingos José Martins, nascido em Itapemirim, fora, juntamente com outros entusiastas da causa pernambucana, um dos precursores ideológicos da forma republicana de governo implantada com êxito no país, o que dava ao Espírito Santo participação importante na sua implantação.

É forçoso ter-se de concordar com a peocupação de Carlos Xavier ao se constatar que, por falta de conhecimento de suas tradições, o Espírito Santo ia, à época, perdendo até mesmo mais uma grande porção de seu território físico. A questão de limites com Minas Gerais já vinha desde a pioneira tentativa de demarcação de linhas divisórias levada a efeito em 1800 pelos governadores Silva Pontes e Bernardo de Lorena, visando a estabelecer registros, destacamentos, comunicação dos correios, navegação pelo Rio Doce e arrecadação de tributos devidos à Coroa. Esta questão tomou vulto no século XX, sendo, inclusive, ventilada nos Congressos Nacionais de Geografia realizados na época, o sétimo, na Paraíba, sendo o dr. Carlos Xavier o representante do IHGES, e o oitavo, em Vitória.

Ora, a ameaça de mais um desmembramento do território capixaba era real, e gerou embates jurídicos nas mais altas Cortes do país e confrontos militares pelas terras dos dois Estados vizinhos, até a assinatura do acordo entre os governos de Francisco Lacerda de Aguiar, pelo Espírito Santo, e Magalhães Pinto, por Minas Gerais, já em 1963, pondo fim à contenda.

Esse resgate das tradições locais invocada na ocasião como motivo para fundação do IHGES teve, então, uma função específica: a de fundar, em bases “científicas”, uma individualidade capixaba, ameaçada até mesmo de extinção, pela falta de registro (e respectiva apreciação apropriada deste registro), pelo expansionismo cultural e inclusive militar dos vizinhos. De fato, se se considerar, como certa corrente, que a história nacional não passa da reunião das histórias locais, para que o Espírito Santo ressurgisse no cenário nacional se fazia necessário que no âmbito local e por sua conta cuidasse de escrever a sua própria história.

Foi a tarefa a que se propuseram os idealizadores do Instituto, registrando-se nos primeiros números da Revista a adesão popular à causa de coleta e reunião de documentos relativos às tradições locais. Doados ao IHGES, esta passou a reuni-los e catalogá-los, dando publicidade por meio do periódico aos que eram considerados de maior interesse do público em geral. Começa a cumprir, assim, aquele mesmo objetivo que fora traçado para si pelo próprio Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na sua tarefa de produzir uma história do Brasil.

Assim o Instituto capixaba, como também pretendia o nacional, deveria cuidar de proceder ao resgate de um mito de fundação; como também pretendia o pernambucano, deveria cuidar de proceder a uma valorização do local frente ao nacional, Mas, diversamente deste último, não se tratava, aqui, de impor a valorização do local fundado na simples recordação de tradições reconhecidas, mas no próprio resgate delas, que ainda estavam a dar por conhecer.

Este contexto justifica, por si só, o estilo – da mesma forma que o do IHGB oitocentista – evocativo e comemorativo de que se revestiu a produção literária inicial do IHGES. Tratava-se, repita-se, de se inventar uma individualidade local pela formação de um mito fundador, que haveria de ser pesquisado e resgatado de fontes primárias ainda não compiladas, sequer reunidas. Mas nada disso impediu o desempenho dessa função, de que se desincumbiu o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo da melhor maneira que lhe foi possível.

Interessante registrar a aparente crise de identidade vivida pelo IHGES nos seus primórdios, que reflete de algum modo a aparente crise de identidade por que passavam então, em maior ou menor grau, as casas do gênero. Numa associação que se orgulha de ter sido fundada sob a inspiração da onda republicana que arrebatou, na segunda metade do século XIX, vultos de relevo da vida política e social do Espírito Santo, as homenagens ao Imperador D. Pedro II se fizeram bastante presentes nos primeiros números da Revista. Foi enviada representação da Casa ao IHGB por ocasião das comemorações do centenário do nascimento do monarca, em 1925. O Instituto fez realizar sessão solene na data natalícia, dois de dezembro, deliberando mandar rezar Missa Campal e sugerir ao Governo do Estado o nome do Imperador para batizar a Escola Normal estadual. Ainda hoje o acervo do IHGES reúne pinturas raras, retratando membros da Família Real brasileira.

Esta aparente contradição não resiste a um exame mais atento. Os institutos históricos e geográficos foram modelos inicialmente pensados sob condições específicas, pode-se até mesmo dizer, aristocráticas, que permeavam a sociedade letrada da época de sua concepção. Não por outro motivo o IHGB fez instituir selos, medalhas, espada, fardão e outras insígnias de prestígio para distinguir seus membros. A monarquia, em geral, e o Imperador D. Pedro II, em particular, constituíam as circunstâncias materiais em meio às quais este modelo veio ao mundo, ao menos no Brasil. Por outro lado, o Imperador, monarca reconhecidamente esclarecido, teve participação destacada na consolidação desse tipo de associação pela sua atuação junto à associação nacional. Assim, o culto à personalidade do Imperador, um incentivador e ele mesmo participante ativo desse gênero de movimento acadêmico, representava antes o culto à própria instituição e à sobrevivência do movimento, que se haveria de manter no tempo porque descobriu o próprio IHGB ser ele independente da forma de governo. O que vale dizer, as tradições nacionais, em geral, e as locais, em particular, não deixariam de existir, nem a necessidade de seu resgate se perderia, pela mudança tão radical dos destinos políticos do país.

O que resta daí é que os institutos históricos e geográficos souberam separar a noção de nação de sua representação político-institucional, o que pareceria difícil quando se recorda que, nas salas do IHGB recém-fundado, a mentalidade reinante (e não poderia ser outra) era de que a história da Corte é a história da nação. Souberam fazer a transição entre tempos político-institucionalmente distintos, no que, como instituições particulares tão intimamente ligadas à esfera estatal, representaram o retrato da adaptação da vida nacional à nova ordem que haveria de viger a partir da proclamação da República.

(extraído de NEVES, Getúlio M. P. Notícia do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Vitória: IHGES, 2005, p. 20/27)

NOTAS:

1 Do “Discurso pronunciado na sessão de fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo pelo orador Dr. Carlos Xavier Paes Barreto, a 12 de junho de 1916” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1, 1917, p. 14.

2 RIHGES 1, 1917, p.7

3 RIHGES 1, 1917, p. 13/14

4 Idem, p.14