14 de outubro de 2011

Algumas questões simples sobre a Justiça Militar


1) Por que uma Justiça Militar?

Como cidadãos, todos estamos sujeitos à jurisdição penal, no caso da prática de crime, e à jurisdição civil, no caso de causar dano a alguém.

Como servidores públicos, estamos sujeitos ao poder disciplinar da Administração Pública e à obrigação de probidade no trato da coisa pública.

Mas os militares - que são cidadãos e servidores públicos e militares - estão sujeitos, também, à jurisdição especializada, que é a Justiça Militar.

Isto porque o exercício diário da sua condição exige a observância de regras de conduta rígidas, no interesse da organização que integram. Ninguém é militar por si só, mas sim integrado numa Corporação: Marinha, Exército, Aeronáutica, Polícias Militares, Corpos de Bombeiros Militares.

É óbvio que, sendo integrantes de instituições baseadas primordialmente na hierarquia e na disciplina, as regras de conduta sejam mais rígidas para militares do que são para os demais servidores. Porque o estatuto de militar é especial e exige algo mais para ser conferido. Os militares eram civis até que, pela formação a que se submeteram, se tornaram militares. Portanto, as obrigações concernentes à conduta que devem adotar são maiores. Se assim não fosse não haveria diferença entre militares e civis.

Mas por que isso acontece? Por que a exigência maior com relação á conduta do militar? Porque o servidor militar, das Forças Armadas ou das Forças Auxiliares, é preparado para exercer a força. Não é qualquer um que pode trabalhar utilizando a força -como, de resto, não é qualquer um tambem que pode conduzir um veículo em via pública.

O uso da força não significa somente o recurso à arma de fogo. Policiais civis e federais também usam arma de fogo, mas em condições normais não entram em confronto. Desempenham outra função constitucional. Então o uso da força, aqui, significa dissuadir e coibir, que é função constitucional da Polícia Militar. Significa afastar empecilhos, voluntários ou não, às operações de busca e resgate, função constitucional do Corpo de Bombeiros Militar. Portanto, policiais militares e bombeiros militares podem usar a força consentida para: dissuadir alguém de perturbar a ordem pública e para coibir aquele que já tenha iniciado a execução da conduta atentatória à ordem pública, os primeiros; para garantir a incolumidade pública, os segundos.

Mas policiais militares e bombeiros militares usam a força consentida pelo Estado sempre contra cidadãos do próprio Estado. Cuja incolumidade é dever do Estado, da mesma forma, garantir. Assim, é necessário que o uso dessa força exercida pela Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar seja rigorosamente fiscalizado tendo em mente, sempre, duas ordens de indagação: 1) a ocorrência de eventual abuso de meios por parte do agente; 2) a ocorrência de eventuais falhas na prestação do serviço.

É a rigorosa fiscalização por parte das instâncias administrativas e judicial que confere legitimidade à atuação das Corporações Militares estaduais e à atuação de cada um dos seus integrantes. Sendo os militares uma categoria tão diferenciada, o trabalho de fiscalização que se faz na Justiça Militar, como instância especializada no modus operandi dos militares, concorre para conferir legitimidade ao exercício da função policial militar. Quer dizer, a população sabe que, havendo um dano qualquer no desempenho da função de policiais e bombeiros militares, os fatos serão investigados. Ou deveriam ser investigados, porque existem órgãos só para isso.

2) Qual a vantagem de existir uma Justiça Militar nos Estados?

Como as coisas são vendidas ao público hoje em dia, para o destinatário do serviço prestado pela Auditoria de Justiça Militar - a população - a certeza de que, sendo uma justiça especializada, não ficará assoberbada de processos e por isso mesmo a fiscalização da atividade dos seus jurisdicionados será desempenhada de forma mais eficiente.

Para o jurisdicionado, o policial e o bombeiro militares, 1) a garantia de que sua atividade será fiscalizada por um órgão especializado e que conhece sua forma de atuação; 2) que será julgado com base em regras especiais, que contemplam a especialidade de sua atuação;

Como pensada desde há muito tempo, isso era conseguido pela instituição do Conselho de Justiça Militar como órgão judicante. O Conselho de Justiça Militar confere legitimidade à decisão frente ao seu destinatário, o réu no processo penal militar, porque da decisão participam julgadores que já estiveram ou poderão vir a estar na mesma situação daquele. Ou seja, é alguém que conhece as dificuldades na atuação e portanto pode “entender melhor” a conduta do réu nas circunstâncias.

3) Como ficou a Justiça Militar estadual após a EC 45/2004?

Hoje o que se considera em primeiro lugar é que as Corporações Militares estaduais existem para prestar um serviço à população. Importa, então, saber se o serviço está sendo prestado de forma eficiente ou não.

Assim, na esteira de recomendação de organismos internacionais, pode-se considerar que o que fez o Constituinte na revisão de 2004 foi submeter as condutas criminosas dos militares estaduais que atentem contra a instituição a um órgão judicante formado por integrantes da própria instituição e as condutas criminosas que atentem contra a prestação do serviço em si, portanto contra o destinatário do serviço, a um juízo singular.

Simplificadamente, pode-se dizer que o principal objetivo até então era a defesa da Corporação, punindo o militar que prestasse um mau serviço e que assim atentasse contra esta. Após a reforma, simplificadamente também, pode-se dizer que o foco passou a ser a própria eficiência na prestação do serviço, e assim não há necessidade de alguém dizer, juntamente com o juiz togado, se o serviço foi ou não prestado de forma satisfatória.

Assim, se no atendimento a uma ocorrência de resgate se causa uma lesão corporal e pratica, em tese, a conduta descrita no art. 209 do CPM, essa prestação defeituosa do serviço é julgada pelo Juiz Singular. Mas se o policial ou o bombeiro exige uma vantagem indevida para livrar alguém de sua ação e pratica em tese a conduta do art. 305 do CPM (concussão), está atentando contra a própria Corporação, que não pode permitir servidores desonestos entre seus integrantes. A conduta é julgada pelo Conselho de Justiça Militar, como têm entendido os Tribunais.

Se estatisticamente a maior quantidade de ações penais contra policiais militares é julgada pelo Juízo singular (nos casos, especialmente, de lesões corporais), a maior parte dos delitos praticados por bombeiros militares é julgada pelo Conselho de Justiça Militar, por atentarem contra a própria Corporação: casos de atestados e certidões falsos e de prevaricação – felizmente, muito poucos em comparação ao volume total de ocorrências julgadas na AJMES.

A função atual da Justiça Militar estadual continua a contemplar aquela que se pode dizer essencial, que é a de julgar os integrantes das Corporações Militares estaduais na prática de crimes ditos militares E – competência acrescida na Revisão Constitucional de 2004 – julgar ações judiciais contra atos disciplinares militares. Significa dizer, ações judiciais para reverter punições disciplinares, aplicadas com base em Processo Administrativo Disciplinar ou em Conselho de Disciplina.

4) Quando se é submetido à Justiça Militar estadual?

Tirando a competência cível que lhe foi atribuída na reforma constitucional de 2004, a Justiça Militar estadual é competente para o julgamento de militares estaduais quando cometem crimes militares. Quando é que o militar comete um crime militar? Quando pratica uma conduta descrita no Código Penal Militar – abuso de autoridade, tortura, porte ilegal de arma, formação de quadrilha, não estão tipificados no CPM - desde que esteja numa das situações do art. 9.º do CPM. A mais simples delas, quando o militar estiver em serviço; a segunda mais simples, quando o fato acontecer dentro de estabelecimento sob administração militar.

Sendo assim, a Justiça Militar existe – repita-se – para julgar a função militar, não a pessoa do militar. Como cidadão que é, o militar que não esteja em serviço nem atente contra a Administração Militar nem contra outro militar é julgado na Justiça comum, como qualquer cidadão.

Na prática saber se ocorreu ou não um crime militar pode ser complicado, e existem casos de militares que respondem, principalmente no interior, a ações penais que tramitam em juízos absolutamente incompetentes em razão da matéria. Nesses casos temos dado segmento à ação penal na Auditoria Militar porque a competência da Justiça Militar é constitucional e independe da Lei de Organização Judiciária estadual.

A ideia geral é que a justiça especializada é quem deve decidir de sua competência. Será de competência da justiça comum o que não for da justiça especializada (Tribunal do Juri, Varas de Família, Varas da Infância e  Juventude). Assim, será de competência da justiça criminal comum o que não for de competência da Justiça Militar.  

(extraído da palestra proferida no dia 12/09/2011 para o efetivo do ROTAM da PMES no auditório do COPOM, no QCG de Maruípe)