26 de março de 2011

Sobre Identidade e Individualidade Capixabas

Lembro-me de ter lido certa vez numa revista masculina (salvo engano a Ele Ela, da Bloch Editores), divertido artigo sobre comportamento versando acerca da possibilidade de se identificar a origem de uma pessoa pelo modo desta se comportar na praia. Assim, os paulistas eram reconhecidos de longe pelo fato de suas mulheres na altura freqüentarem a praia maquiadas e cheias de jóias; o carioca, por chegar lá de chinelos e levando apenas uma toalha e o capixaba, por levar à praia aquelas indefectíveis esteiras de palha para se sentar em cima. Acho que comecei então a prestar atenção a isto porque a certa altura me convenci que, de fato, esta constatação era verdade, pelo menos no que dizia respeito às esteiras.

Acho que foi a partir daí que, como carioca de nascimento radicado no Espírito Santo, salvo alguns períodos de vivência fora daqui para estudos, esta questão da identificação do caráter capixaba começou a me ocupar, mesmo que inconscientemente. O que torna o capixaba único, isto é, o que o diferencia dos demais brasileiros? É assunto para muitas laudas, e sem dúvida muitas foram já produzidas com muito mais propriedade e autoridade que as que seguem. Quem for pela internet ao site "Estação Capixaba" pode conferir textos insuspeitos a respeito do assunto, e ao menos a um deles quero fazer menção direta, ao abrir esta tentativa de contribuição pessoal à discussão que tem ocupado alguns dos melhores pensadores da terra.

I - Que significa capixaba?

O professor Guilherme Santos Neves, que dispensa apresentações, faz no texto Por que somos Capixabas? um levantamento de quanto fora investigado na altura (creio que pouco mais se produziu a partir daí), acerca da etimologia e também da mitologia do vocábulo “capixaba”, introduzindo as interpretações do significado em tupi-guarani (ou nheengatu, a língua-geral, só proibida por estas bandas em meados do século XVIII), como designando roça ou plantação. Este termo veio posteriormente a designar o próprio possuidor da roça, isto é, os habitantes da Ilha de Vitória, num processo especial de derivação lingüística que, para Elpídio Pimentel, a que Santos Neves faz referência, se trata da metalepse.

Além dessa explicação de cunho científico, apresenta ainda referido autor a versão folclórica pela qual o nome teria sido estendido aos habitantes da Ilha em virtude da antiga Fonte da Capixaba, onde desembocava a boa água que brotava da Pedra da Vigia e que vinha sendo utilizada, ao longo do tempo, por toda a população. Com o passar dos anos, o povo passou a dizer que o primeiro banho da criança recém-nascida deveria ser tomado naquelas águas, para que tivesse fortuna e felicidade na vida, e assim a fama das águas da Fonte da Capixaba se espalharam.

O fato é que o designativo “capixaba” veio a certa altura diferenciar, efetivamente, o nascido no Espírito Santo do carioca, natural do Rio de Janeiro, e do caipira, que, inicialmente designando o natural do interior de São Paulo, acabou se espalhando por todo o país com o significado de indivíduo interiorano, não versado no trato social (1).

Se é impossível precisar a partir de que época o vocábulo em questão encampou este significado de designação gentílica, é fato que já em 1790 o relatório enviado pelo Capitão-mor Inácio João Monjardino ao Governador da Bahia fazia menção à existência de fontes, indistintamente, na Vila da Vitória (2), enquanto que o Governador Brás Rubim em sua Memória Estatística da Província do Espírito Santo, de 1817, cita expressamente a da Capixaba como uma das duas fontes que havia “nas extremidades da Villa” (3).

Investigações históricas e etimológicas à parte, o que subsiste, nestes casos, é a interpretação doas fatos dada pelo povo. Neste sentido, as propriedades mágicas das águas da fonte da Capixaba (levantadas por Guilherme Santos Neves naquele texto) constituem, sem dúvida, mais uma vertente da milenar tradição que atribui poderes mágicos aos nascedouros e cursos d’água, habitados, quase sempre, por entidades benéficas (por exemplo, as náiades gregas, as ondinas e a própria Iara dos tupi).

II - Identidade - ou individualidade – cultural:

Mas que é que pode fazer com que um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, se sinta ligado de tal maneira a uma determinada região, se veja tão confortável ao adotar determinados usos e costumes de curso comum naquele sítio, a ponto de se fazer designar por um gentílico que o – ou os – identifique? Sem embargo trata-se de matéria afeta à Antropologia e até à Ciência Política, que se debruça sobre o tema ao tentar definir as “aspirações comuns” a uma determinada população (que pode ou não vir a habitar um território determinado), como condição indispensável a que aquela população se venha a individualizar como nação (e não se precisa ir longe para entender isto, quando se lembra que até mesmo os locutores esportivos – que geralmente não têm muita formação em Ciência Política - costumam designar as torcidas de clubes de futebol como “nação” (4) ).

Essas “aspirações”, em se tratando do âmbito do estudo da Ciência Política, podem ser uma mesma língua, uma religião comum, ou a adoção de mesmos costumes pelo grupo populacional em questão. Em se tratando de grupo populacional inserido num grupo maior, como é o caso dos capixabas em relação ao grupo populacional brasileiro, havemos de nos ocupar deste último aspecto, ou seja, da especialização dos costumes, uma vez que a língua e a religião são comuns a todos os brasileiros em geral. Costumes de origem ancestral enraizados na população fazem parte da bagagem cultural daquele grupo. Se apresentam algum traço de originalidade quando cotejados com costumes de outros grupos, pode-se falar neste particular de individualidade cultural do grupo em relação àqueles, mas também de identidade cultural do indivíduo que os cultiva em relação a esse grupo determinado.

Abstrações teóricas à parte, na prática ao se pensar o assunto não se pode partir de outra premissa que não o da constatação da “marginalidade periférica” do Espírito Santo no contexto da nação brasileira (5), o que se deve à sua pouca influência política, sua reduzida expressão econômica (em termos absolutos, visto ser um dos estados do Brasil cuja economia cresce a taxas mais aceleradas) à nenhuma penetração da sua produção cultural (que existe, apesar da descrença dos próprios capixabas).

Este estado de coisas indubitavelmente influi sobre o ânimo da população, sobre a auto-estima dos capixabas, que, acometidos por um “complexo de coitado”, tendem a não valorizar as coisas da terra, tão pobre. Infelizmente, pode-se dizer ser este o principal traço que tem caracterizado o capixaba, ao menos desde o último período de migrações - interiores e exteriores ao estado - por ocasião da implantação por aqui dos grandes projetos industriais, na década de 70 do século XX.

III - Individualidade cultural capixaba:

Ora, sabe-se que o Espírito Santo era, nos primeiros tempos da colonização, a melhor terra do Brasil, no dizer de observadores insuspeitos (porque não radicados em nenhum sítio) - os padres da Companhia de Jesus, sem favor os iniciadores da nacionalidade. De fato, assim se manifestaram sobre a terra os padres Afonso Braz, em carta de 1551, e Antônio Pires, no mesmo ano (6), entre outros, bem como Frei Vicente do Salvador, franciscano, autor da primeira História do Brasil, já em 1627 (7).

A capitania foi entregue a fidalgo de renome, destacado na campanha de expansão portuguesa no oriente, Vasco Fernandes Coutinho. Suas terras constituem, hoje, o único estado brasileiro que não chegou a ser invadido por forças estrangeiras: a população, unida, organizou-se mais de uma vez para repelir ataques e invasões durante os séculos XVI e XVII. No norte da capitania se manteve pela primeira vez na colônia uma campanha sistemática contra exércitos indígenas organizados, na região do Rio Cricaré.

“Tropas” de índios saíram do Espírito Santo para se incorporar às forças que combateram os franceses durante a campanha que culminou na fundação do Rio de Janeiro, tendo estado presentes, durante aquela movimentação, em episódio adotado pela História Militar como o nascimento da Marinha de Guerra do Brasil. Em fins do século XVI, e ao contrário do que se convencionou pensar, a produção de açúcar da capitania era parte expressiva da exportação da colônia para a metrópole. Por aqui, pelo caminho natural do Rio Doce, se fizeram entradas para o sertão à busca de pedras e metais preciosos, e daqui foi dada a notícia da descoberta de ouro nas Minas Gerais, em 1692 ou 1693, por Antônio Rodrigues Arzão, sendo que aquela capitania foi em grande parte desmembrada das terras da do Espírito Santo.

Aqui se registrou a presença do primeiro músico de que se tem notícia no Brasil, Francisco de Vacas, nomeado pelo Governador Geral Tomé de Souza para os cargos de Provedor da Fazenda e Juiz da Alfândega, em 1550, e que posteriormente viria a ser chantre da catedral de Salvador, a capital da colônia. Aqui o Padre José de Anchieta escreveu e fez encenar alguns de seus principais autos, ele que é considerado o fundador do teatro brasileiro, escolhendo esta terra para viver seus últimos dias. Governantes e autoridades da terra foram várias vezes importunados pela população, que em ocasiões históricas diversas exigiu providências da Coroa contra presumíveis desmandos, sendo mesmo atendida em algumas ocasiões (8)...

É curioso notar o processo de achacamento que foi sofrendo o Espírito Santo a partir de certa altura, e que chegou a culminar no famoso “nossos braços são fracos, que importa” estampado no hino do Estado, reconhecimento impotente dessa debilidade que passou a ser debitada à terra. Vasco Fernandes Coutinho, por exemplo, capitão destacado nas campanhas do oriente, passou à história como fracassado, talvez por informação inicial do mesmo Frei Vicente do Salvador - que aliás lhe faz justiça ao reconhecer a grandeza de propósitos (9) - de que teria morrido tão pobre “que chegou a lhe darem de comer por amor de Deus e não sei se teve um lençol seu em que o amortalhassem.” Se morreu tão miserável, em “vilão tão farto”, este fato atesta sua pouca operosidade. Esta informação, repetida inúmeras vezes por outros que simplesmente repetiram Salvador, é hoje contestada: sabe-se que o donatário morreu como proprietário de terras e engenhos.

Mas esta característica tacitamente atribuída ao donatário foi, sem embargo, estendida, num processo de derivação, a toda a população, que aos olhos do restante da nação passou a ser vista mesmo como pouco capaz.

Sem dúvida a primeira tentativa de se consolidar a identidade de um povo se faz por meio da identificação de heróis nacionais. Cá não foi diferente. Ao verdadeiro ressurgimento cultural da província na segunda metade do século XIX (lastreado no capital advindo da cultura cafeeira), ressurgimento este que se verificou pela criação da Imprensa, a fundação de clubes de caráter político e de lojas maçônicas, seguiu-se a fundação, em 1916, do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, tendo como patrono Domingos José Martins, "Herói da Revolução Pernambucana de 1817” e cuja origem capixaba fora até pouco antes posta em dúvida (10). Na esteira deste propósito, cuidou o IHGES, nos anos iniciais de sua história já de oitenta e cinco anos, de, por exemplo, reabilitar a memória de Vasco Fernandes Coutinho, de colocar em relevo o trabalho do Padre José de Anchieta em sua atuação no Espírito Santo, de resgatar a proeza do Caboclo Bernardo em sua operação de salvamento de náufragos na foz do Rio Doce, tudo como forma de identificação e divulgação dessas personalidades passíveis de se constituir em exemplo.

O certo é que a capitania era desde sempre pouco povoada. Com a fundação de Salvador ao norte e do Rio de Janeiro ao sul, o Espírito Santo foi paulatinamente sendo esvaziado, até que a descoberta das riquezas minerais na região das Minas Gerais culminou no travamento pela Coroa portuguesa de qualquer projeto de desenvolvimento da terra, condenada a não mais que baluarte natural de defesa das minas recém-descobertas, durante todo o século XVIII – fato, de resto, amplamente sabido. Golpe de não menores proporções para a capitania, historicamente, seria o da expulsão da Companhia de Jesus das terras de Portugal, incluindo obviamente o Espírito Santo, o que se deu em 1759: toda a atividade educacional e grande parte da atividade econômica se encontrava nas mãos dos inacianos – recorde-se, as fazendas de Araçatiba, destacada na produção de açúcar; Muribeca, destacada na criação de gado e Itapoca, na fabricação de farinha.

A política da Coroa portuguesa foi, assim, funesta para o Espírito Santo durante todo o século XVIII. Somente no início do século XIX recomendou-se especialmente ao Governador Silva Pontes que incentivasse a navegação pelo Rio Doce, proporcionando por essa via a comunicação entre o Espírito Santo e Minas Gerais. Tentava-se romper o isolamento de um século do lado de cá...

Em resumo: o Espírito Santo, capitania muito próspera a princípio, teve reais motivos de implantação e desenvolvimento, em sua população, de um verdadeiro sentimento nativista como conseqüência das querelas decorrentes da ocupação (hoje, por conta de certo revisionismo, usurpação...) das terras indígenas, da resistência a tentativas de saque por parte de corsários, notadamente ingleses, e de invasões armadas, notadamente em razão das guerras holandesas (recorde-se a já referida resistência da população da Vila de Vitória, organizada militarmente nos moldes da época, a mais de um ataque estrangeiro no decorrer dos séculos XVI e XVII). Este sentimento nativista teria tudo para se tornar mais forte em razão da mencionada política da Coroa para com a capitania, até desembocar, no século XIX, como legitimador do processo de arrebanhamento popular (visando à manutenção da estrutura social vigente) por parte da classe dominante local, como em toda a América Latina da época da independência. Só que no Espírito Santo não foi bem assim que aconteceu.

Até como decorrência do sentimento nativista, o principal caráter de lusitanidade do povo brasileiro é a negação de sua origem, pela rejeição dessa sua própria lusitanidade, assim como há quem aponte como principal caráter do povo português a negação de sua hispanidade pela pretensa origem francesa de sua nacionalidade (Dom Henrique, pai de Afonso Henriques, o fundador da nacionalidade portuguesa, era da linhagem dos condes de Borgonha) (11) . Essa negação por parte dos brasileiros da origem lusitana, que sem embargo vem fazer de nós outros filhos de pai desconhecido – com todas as conseqüências psicológicas que este fato acarreta – acabou por se firmar induvidosamente em conseqüência da independência, quando os “portugueses do Brasil” passaram a se distinguir dos portugueses europeus. E se consolidou por força do preconceito em geral dos brasileiros contra trabalhadores estrangeiros, portugueses em particular (por serem em maior número, mesmo já em meados do século XX), ocupantes de postos de trabalho que deveriam estar naturalmente destinados – pelo senso comum - a cidadãos brasileiros.

O certo, repita-se, é que a capitania era desde sempre pouco povoada. A propósito, no princípio do século XIX a (já) província contava por volta de 35.000 almas (12), incluído neste número a população de índios aldeados. Em vista desta pouca população é que a posterior imigração estrangeira teve no Espírito Santo como móvel principal o povoamento e a ocupação da terra, e só depois (e posteriormente, cronologicamente falando), o de substituição da mão-de-obra escrava. Assim, esse caráter de brasilidade consistente na tal negação da lusitanidade se deve, no capixaba, muito mais ao efeito da imigração, já que Italianos e alemães que vieram povoar as terras do Espírito Santo nem de longe se sentem ligados de alguma maneira a qualquer coisa que lembre Portugal.

Essa singularidade de formação do seu caráter é inconscientemente detectada pelo capixaba, que se reconhece de alguma maneira como diferente dos habitantes dos estados do nordeste, dos habitantes dos estados do sul e até dos de São Paulo, os que, neste particular, mais se assemelham a nós, mas onde a imigração italiana e alemã não teve, quantitativamente, o peso que teve no Espírito Santo. E detectada esta diferença, que associa ao papel de marginalidade do estado no contexto nacional, o capixaba tende naturalmente a desvalorizar o que é para, pela neutralização dessa diferença, integrar-se, já agora como brasileiro, nesse contexto. Exemplo, é chique torcer para clubes de futebol de São Paulo (embora seja popular torcer para clubes de futebol do Rio de Janeiro).

IV - A valorização da identidade:

Foi neste ponto que começou a acontecer o incremento desproporcional das relações internacionais, conseqüência do fim da guerra-fria, com suas conseqüentes vertentes de homogeneização das relações comerciais e da produção cultural. E paradoxalmente, foi só então que a tal “identidade capixaba” voltou a ser pensada, ou passou a ser repensada, já agora como expressão da valorização do local como forma de desmarcação com relação àquilo que vem de fora – o que, de resto, se constitui numa tendência mundial. E a maneira que têm os grupos humanos de externar esta uma “individualidade cultural” que lhes seja própria, dando-lhe visibilidade, opondo-a a outros grupos, é o externá-la por meio de sua produção artístico-cultural.

Francisco Aurélio Ribeiro expunha, no início da década de 90, a detecção do caráter de marginalidade (pela marginalidade geográfica e cultural do estado) de que se reveste a literatura produzida no Espírito Santo (13); na mesma altura, Alexandre Lima e o Maestro Jaceguay Lins se apropriavam da linguagem das bandas de congo em espetáculo no Teatro Carlos Gomes, inaugurando uma tendência de resgate e utilização de expressão musical local na linguagem de música popular a ser consumida pelas massas (14); mais ou menos pela mesma época Amylton de Almeida quase finalizava seu longa-metragem O Amor está no Ar, uma história que se passa por aqui e retrata costumes locais, como a festa de São Benedito (15).

Se na literatura produzida no estado esta característica de valorização do regional, principalmente de seus aspectos históricos e etnográficos, já se fazia notar anteriormente em certas obras (listem-se, de forma ligeira, os exemplos de A Oferta e o Altar, de Renato Pacheco, Karina, de Virgínia Tamanini, A Nau Decapitada, de Luís Guilherme Santos Neves, Rua da Conceição, Micarense, Pontal..., de Sérgio Pessoa, Cotaxé, de Adilson Vilaça) – até porque houve anteriormente em termos de literatura brasileira um regionalismo como vertente estilística - na música popular a valorização da expressão local passou-se a fazer efetivamente a partir daí, e na busca de alguma coisa que se possa assemelhar a música genuinamente capixaba destacam-se hoje as bandas Manimal (de Vitória) e Casaca (da Barra do Jucu, Vila Velha), ambas, não por coincidência, adotando a linguagem das bandas de congo como base de sua expressão (16).

V - Marginalidade periférica:

A obra de Francisco Aurélio Ribeiro é importante aqui na medida que tornou expressa a constatação desse traço do caráter capixaba, dessa “marginalidade periférica”. Creio ser por aí que o Espírito Santo pode marcar sua diferenciação no contexto nacional, pela afirmação inequívoca dessa diferença. Nem se diga que isto representaria o aceitar do fato de “nossos braços” serem “fracos, que importa”; seria, antes, uma auto-afirmação, advinda da constatação de que, se somos marginalizados, é porque somos diferentes.

Há vantagem nisso, nessa aceitação da marginalidade? Procurando uma resposta, vou mais uma vez fazer menção a Portugal (afinal, o caráter português é a gênese do caráter nacional). O país apresenta, inegavelmente, esta mesma característica de “marginalidade periférica” nos aspectos não só geográfico mas também cultural, em relação à Europa. Autor português chamado Agostinho da Silva – pensador que inclusive lecionou bastos anos na Universidade de Brasília - em texto datado de 1957, Reflexão à margem da Literatura Portuguesa (17), parte da constatação de que o maior feito histórico de Portugal não foram os descobrimentos, ou a fundação das nações ultramarinas, mas a manutenção da independência dos territórios periféricos, por sua tenaz resistência à onda centralizadora irradiada na Península Ibérica desde Castela.

Ora, Portugal parece ter encarnado definitivamente esta “missão”, bastando lembrar que sua diplomacia obteve retumbante triunfo ao conseguir, praticamente sozinha, manter a questão de Timor Leste sempre em pauta no âmbito da Organização das Nações Unidas ao longo de mais de vinte anos. Acabou sendo a responsável maior por forçar um desfecho, que no caso foi a libertação de Timor Leste da ocupação indonésia – feito pelo qual se pagou, infelizmente, um alto preço em vidas humanas – e dando à própria ONU a oportunidade de monitorar pela primeira vez o nascimento de um Estado nacional. Trata-se, sem dúvida, de não pequeno feito.

Agora, se na correlação com o Espírito Santo, trocarmos a “manutenção da independência” invocada por Agostinho da Silva por manutenção (ou defesa) da individualidade cultural das culturas periféricas? Ao Brasil deve ser demonstrado que a característica maior da cultura capixaba, considerada como objeto de reflexão, é sua desconcertante diversidade, patente até mesmo do fato da pouca miscigenação de grupos étnicos diferenciados, caso dos pomeranos das regiões centrais e dos grupos indígenas da região de Aracruz, que só muito lentamente se vão integrando culturalmente ao restante do estado.

Neste aspecto o Espírito Santo pode vir a ser para o Brasil um laboratório privilegiado de observação da formação da própria individualidade brasileira (até mesmo porque este processo da formação da individualidade capixaba está a ocorrer no dia-a-dia). A demonstração deste fato ao restante do país só pode ser feita pelos próprios capixabas, através de suas realizações materiais e culturais, num processo que, a ser de fato realizado, sem dúvida haverá de ajudar a promover o resgate de sua auto-estima.

Creio que a correlação entre os dois casos – o de Portugal e o do Espírito Santo - é bastante evidente, pelas características apontadas, e por isto se justifica a utilização que ora se faz do caso português para pensar o caso capixaba. E não se devem escandalizar por isto os nossos bons descendentes de alemães e italianos. Afinal, não se propõe aqui uma “relusitanisação” de nada, antes, apenas o reconhecimento íntimo, e posterior afirmação nacional, dessa “marginalidade periférica” de que, um pouco como os portugueses, sofremos os capixabas, fazendo dela não uma marca de inferioridade, mas de individualidade, não de pobreza, mas de diferença cultural, não de fraqueza, mas, a final, de operosidade dos “nossos braços”, que sairão fortalecidos desse processo.

VI - Finalmente...
Afinal, que é que torna o capixaba único, isto é, o que o diferencia dos demais brasileiros? Atualmente, os capixabas já não mais se sentam na praia sobre esteiras de palha, o que sem dúvida dificulta muito a sua identificação (e ao se constatar que afinal o capixaba terá trocado a esteira de palha pela toalha de praia do carioca se poderiam gastar por isto muito mais páginas comentando os efeitos da globalização etc., os efeitos das novelas da Rede Globo sobre os hábitos da população do resto do país etc.,).

Já disse que o pensar esta questão é-me bastante grato; por outro lado, pode me vir a ser bastante útil, porque tenho um filho “alfacinha” (natural de Lisboa, intra-muros, como oposto a “saloio”, o suburbano), e as crianças fazem perguntas. E se ele, distante da nossa realidade, me perguntar alguma vez o que vem a ser capixaba, quem sabe possa lhe responder algo mais do que “é o brasileiro que ao conduzir veículo usa a pista da esquerda como se fosse a de baixa velocidade” - este sim, Guilhermes, Ribeiros, Pachecos, outros pensadores capixabas – o traço ainda mais visível, mais indiscutível e sem dúvida mais irritante, de nossa identidade cultural...

Praia da Costa, agosto de 2001
Para o Miguel.


NOTAS:

1) Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, 6.ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988, p. 176/177.

2) Apud José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito Santo, Vitória: 1975.

3) A outra era a da Lapa, enquanto que a Fonte Grande ficava “quasi no centro” (da vila). Apud Aristides Freire, “A Capichaba e os Capichabas”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, vol. IX, 1935.

4) Os torcedores mais velhos devem se recordar que o então radialista, hoje ilustre Promotor de Justiça aposentado e Presidente, por várias vezes, do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação de Futebol do Espírito Santo, Dr. João Cézar Sandoval, referia-se à torcida do Rio Branco Atlético Clube como “a nação de Jucutuquara”...

5) Essa expressão, utilizada por Francisco Aurélio Ribeiro no título de uma de suas obras, será bastante explorada mais abaixo.

6) ambas em Cartas Jesuíticas, vol. II, Belo Horizonte. Ed. Itatiaia, 1988.

7) História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1982, pág. 108/109.

8) Em 1724 os moradores da Vila de Vitória fizeram encaminhar, por quem fazia as vezes de Capitão-Mor da Capitania, representação ao Conselho Ultramarino contra o Vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória, João Trancoso de Lira; em 1726 o Bispo da Capitania do Rio de Janeiro (a que estava submetida eclesiaticamente o Espírito Santo) informava o Conselho Ultramarino da suspensão do clérigo, em atendimento às reclamações da população. Em 1733 o povo da Vila pedia a expulsão do clérigo Bento Lobo Gavião ao Capitão-Mor, em representação assinada por autoridades (Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Espírito Santo: 1585/1822. Vitória: Arquivo Público Estadual, 1998). Nos idos de 1800 o povo da capitania representava contra atos do Governador Silva Pontes (apud José Teixeira de Oliveira, História do Estado do Espírito Santo. Vitória: FCES, 1975).

9) “E como o espírito de Vasco Fernandes era grande, deixando ordenados quatro engenhos de açúcar, se tornou pera o reino a aviar-se pera ir pelo serão a conquistar minas de ouro e prata de que tinha novas...”, op. cit., pág. 108.

10) Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, vol. I. Vitória, 1917.

11) Esta idéia é expressa por Antônio José Saraiva em A Cultura em Portugal, Livro I: Teoria e História 2ª edição. Lisboa: Gradiva, 1996.

12) Números do censo de 1827; apud José Teixeira de Oliveira, op. cit., pág. 294.

13) Veja-se A Literatura do Espírito Santo: Uma marginalidade periférica. Vitória: Nemar, 1996.

14) Explorei o tema em texto publicado no volume 19 dos Escritos de Vitória, o Vitória de todos os Ritmos; nesse texto, intitulado “Tentativa de Identificação de Tendências Contemporâneas na Música Popular do Espírito Santo”, procurei provar que, longe do que se convencionou pensar, a produção musical no Espírito Santo esteve ao longo do tempo sempre afinada com o contexto nacional - e até o internacional que, ao fim e ao cabo, influencia aquele.

15) Sobre o filme e outros aspectos da obra do jornalista Amylton de Almeida veja-se A Múltipla Presença: vida e obra de Amylton de Almeida. Vitória: Sec. Municipal de Cultura e Turismo, 1996, org. de Deny Gomes.

16) Também sobre essa apropriação da linguagem das bandas de congo e sua utilização por grupos de música popular veja-se o meu texto “Tentativa de Identificação de Tendências Contemporâneas na Música Popular do Espírito Santo”, loc. cit.

17) Lisboa: Guimarães Editores, 1996.

(publicada originalmente no n.º 20 da série Escritos de Vitória, Identidade Capixaba. Vitória, 2001, pp. 78/89 e em Estudos de Cultura Espírito-santense. Vitória: IHGES, 2006, pp. 103/120)



19 de março de 2011

Rever Lisboa, no verão


Lisboa, assim como Roma, mas por muito menos tempo que esta, já foi o centro do mundo. Na época da exploração e levantamento de novas rotas comerciais que evitassem o concurso de muçulmanos e seus parceiros comerciais genoveses, por Lisboa circulavam pessoas, bens e produtos de todos os cantos do mundo conhecido – cujas fronteiras, aliás, a cada dia se alargavam mais, graças às naus portuguesas e espanholas que cortavam o Mar Oceano em todas as direções.

A cidade de Ulisses, de onde, consta, foi levado o campeão Aquiles por aquele comandante ao teatro de operações na famosa guerra de aqueus contra troianos, a verdade é que Lisboa, em localização privilegiada, é entreposto comercial antiqüíssimo. Toda obra de engenharia que se empreenda às margens do Tejo é arriscado se encontrar algum vestígio romano ou grego ou fenício ou árabe ou lusitano. Consta haver ruínas de uma terma romana por debaixo do calçamento da Rua Augusta.

A majestosa Rua Augusta, ladeada pelas ruas do Ouro e da Prata – por onde escoavam na época do esplendor comercial as mercadorias desembarcadas no porto junto ao atual Terreiro do Paço (praça que, sem dúvida, só impressiona menos que a de São Marcos, em Veneza e que foi o local de concentração das tropas que desencadearam a Revolução dos Cravos, repondo Portugal de volta no seio do mundo democrático). E que termina no Rossio, praça erguida sobre antiga região de alagados, o elegante passeio da cidade oitocentista, mas também local de flagelo de cristãos-novos e sede do Santo Ofício nos idos do século XVI.
Dom Afonso Henriques

Lisboa, a cidade que guarda as relíquias de São Vicente, seu padroeiro, trazidas do Algarve numa nau transportada por corvos. Reconquistada aos árabes no desenrolar de uma das primeiras Cruzadas da cristandade e cujo castelo, tomado por Afonso Henriques, conserva-se, eterno, sobranceiro à antiga vila, dominando-a até ao Tejo, ao impressionante Tejo, o motivo principal da urbe. Cidade natal de Santo Antônio, que acabou por passar à devoção popular como “de Pádua”, apenas por se tratar da cidade onde posteriormente viveu; da proteção de Nossa Senhora da Penha de França, senhora dos navegantes; cidade ocidental das sete colinas, e assim bem como Roma.

Melhor que procurar as atrações para turistas e às compras em regime de “tax free” é tentar penetrar a vida da cidade, o cotidiano das pessoas. E rever a cidade onde se morou, mas com que não se perde o vínculo, é rever-lhe os cantos que nos dizem qualquer coisa.

Como uma praça, em plena rua Pascoal de Melo, onde há “baloiços” para crianças, onde se reúnem nas tardes quentes mães e pais e babás para aguardar as brincadeiras dos “miúdos”. Senhores “reformados” num dos extremos, jogando cartas. Rapazes num outro extremo, tentando controlar uma bola. Vez por outra, uma jovem mãe ralhando com o filho que não se quer ir embora. A maior parte das vezes, jovem e bela mãe.

As portuguesas são tipos físicos variados, resultado da grande miscigenação do povo ao longo dos séculos: no norte as há loiras, clarinhas, e quanto mais se desce em direção ao sul mais se percebem os traços árabes, morenas e rijas. Se para mim as portuguesas mais bonitas estão em Braga, em Lisboa, cidade cosmopolita, se encontram mulheres de todos os tipos e matizes e belezas as mais variadas.

Bêbados, que os há em todos os lugares. Neste lugar, neste dia em especial, um simpático embriagado metia-se no parlamentar de um grupo de senhoras, que se poderiam chamar de “terceira idade”, e que falavam determinadas do general Jonas Savimbi, comandante da Unita que por anos passou Angola a ferro e fogo e foi morto no início de 2002 em confronto com o exército regular do país. Ouvindo disfarçadamente que estava, fiquei sabendo que a família do general está muito bem após sua morte, por conta dos bens que deixou. Concluíram as palestrantes se tratar de um homem mau.

Que interessante grupo de senhoras portuguesas, interessante sobretudo porque as senhoras se vestiam das cores mais vivas, em seus vestidos leves, próprios de verão. Não mais aquelas roupas negras e pesadas, das viúvas e mães sofridas das aldeias, estilo que por muito tempo “ditou moda” mesmo nas cidades. E falavam em recordações da terra de cada uma delas, que os portugueses das cidades só começam a ser numerosos a partir das gerações mais modernas. Todos são vindos de uma “terra”, uma aldeia ou herdade nos interiores profundos do país.

Mas se as roupas das senhoras já não são as mesmas, os costumes ainda se mantêm, em maior ou menor grau – e felizmente é assim em termos gastronômicos. O bom queijo de Azeitão, o bom vinho do Alentejo...

Lisboa no verão é muito, muito quente. Felizmente, quase a metade da população sai da cidade, em direção à “terra” ou em direção ao Algarve, onde o português disputa espaços aos alemães e ingleses. Atualmente a duas horas e tal, apenas, da Capital do país, o Algarve é o destino turístico mais procurado pelo lisboeta de bom poder aquisitivo. Este de bom grado cede os encantos de sua cidade aos turistas de todo o mundo, a lhe encherem as ruas e os trens do metro dos mais variados idiomas, de trás das inevitáveis mochilas de andarilhos, que levam os também inevitáveis mapa local e garrafa d’água. Os lisboetas que ficam envolvem-se, ao meio da temporada de verão - apaixonadamente como o sabem fazer os portugueses - na polêmica anual dos touros de morte na vila de Barrancos (desferir ou não na besta estocada fatal, em plena arena?) e na armação de Sporting e Benfica para a próxima temporada de futebol, a se iniciar ao fim da estação.

Enfim, uma concessão ao turístico: suba, amigo, devagar, pela Rua do Carmo, do Rossio até lá acima, ao Chiado. Sente-se ao café A Brasileira (se o conseguir) e tendo ao lado a companhia em bronze de Fernando Pessoa apenas observe as cenas da cidade, no verão. É confortador saber que a cidade de Eça e de Garret, de Salazar e de Amália, do Madredeus e um pouco minha também continua lá, e que mais adiante o castelo de São Jorge continuará - mesmo na minha ausência e apesar dela - a dominar a velha Sé e o casario-sobre-o-Tejo até a volta, desta vez, no inverno.

Praia da Costa, julho de 2002

9 de março de 2011

CARNAVAL


Nesta época opiniões contrárias ao carnaval, veiculadas nos meios de comunicação, são muito comuns. E pelos mais diversos motivos: religiosos, morais, econômicos e alguns outros. Isto porque os alegados excessos, a “pornografia”, o ócio por quase uma semana, seriam prejudiciais, a juízo de alguns, à economia e aos bons costumes.

Na verdade o costume de festejar o entrudo, a terça-feira gorda de carnaval, é resultado do acúmulo de tradições ancestrais e foi trazido para o Brasil pelo colonizador português. Só por isso, por este pecado original, deveria ser banido sem dó dos nossos costumes, na busca da pureza africana primordial que preconizam os nossos intelectuais nesta quadra de nossa História. Mas a contrário do que poderiam vaticinar os estudiosos das coisas da mãe África, o fato é que o interesse dos descendentes de africanos, escravos ou forros, também era despertado para os festejos porque – não fora o clima que contagiava a população - as Sociedades Carnavalescas, uma das espécies de agremiações precursoras da festa atual no Rio de Janeiro, faziam durante os préstitos campanhas humanitárias para arrecadar fundos para feridos de guerra (a do Paraguai) e para providenciar a alforria de escravos.

Inúmeros são os registros sobre essas iniciativas nas primeiras agremiações surgidas na Corte: o Sumidades Carnavalescas, a mais antiga, de 1855, que contava entre os seus sócios com José de Alencar; a Tenentes do Diabo, que contava entre os seus sócios com Quintino Bocaiúva e José do Patrocínio; e mais os Fenianos e os Democráticos. Ou seja, grandes lutadores da causa da Abolição brincavam o carnaval e ainda se serviam dele para divulgar o movimento. Aliás, e a propósito disto, reproduzo versos distribuídos pela sociedade Fenianos no carnaval de 1889, apud COSTA, Haroldo. 100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001, p. 22:

"Venceu-se finalmente a tremenda campanha
Maio, o divino mês, deu-nos a abolição!
A luz de um novo sol detrai a nódoa estranha
Que há três séculos manchava o nosso pavilhão!
A Pátria ressurgiu de um morno alento
Na vitória final que honrou a Humanidade
Somos um povo livre! Olhai! Neste momento
Cobre esta grande terra o Sol da Liberdade!"

Essa sociedade dos Fenianos tinha esse nome por causa dos soldados fenianos, irlandeses católicos que de 1865 a 1869 lutaram para se libertar do jugo inglês, como esclarece o pesquisador na mesma sede. Conjunção de registros, aliás, que o leva a exclamar a determinada altura: “curiosa cidade a nossa [o Rio de Janeiro] que transformou o carnaval num bastião da luta pela liberdade e os direitos humanos.” É fato.

Resgatada essa faceta de luta/resistência dos festejos carnavalescos que originaram o formato atual da folia, justificado, assim, o tema, aos olhos rigorosos da academia, tenho a impressão – pessoal - de que os festejos de carnaval são de fato mais apreciados onde mais acentuada é a influência portuguesa: não considerando aqui as regiões do interior de Minas Gerais, falemos no Rio de Janeiro, que abrigou a Corte; Salvador, a primeira sede administrativa da Colônia; Olinda/Recife, onde se manteve uma nobreza agrária bastante ciosa de seus usos e costumes maternos. Todas as três regiões, aliás, com linguagem própria para embalar a festa: o samba, a chamada axé music e o frevo, respectivamente.

Procurando robustecer esta minha opinião, acrescento que à brincadeira do carnaval incorpora-se também a do Zé-Pereira (o sábado de carnaval é o sábado do Zé Pereira). Para esta difundiu-se, entre os estudiosos do carnaval no Brasil, uma origem histórica bem definida: atribui-se ao sapateiro lusitano José Nogueira de Azevedo Paredes a introdução do folguedo em terras brasileiras, mais especificamente no Rio de Janeiro. Razão assiste ao citado Haroldo Costa: trata-se, o Zé Pereira, de tradição antiqüíssima em Portugal, de romarias e procissões da região do Minho. Nosso heróico José Nogueira, saudoso das tradições da terra, ao sair à rua no carnaval de 1846, acompanhado de patrícios em zabumbas e tambores, apenas cuidou de fazer, aqui, o que se costumava fazer por lá.

Que as práticas relacionadas à brincadeira do entrudo eram meio selvagens depreende-se, por exemplo, de sua proibição expressa por meio de edital do chefe de polícia da Corte em 1857. Talvez por isso mesmo à brincadeira – e há registros do gosto que por ela tiveram os dois Imperadores do Brasil – quiseram os intelectuais (opa, elites) dar uma feição mais refinada, introduzindo na festa as práticas das mascaradas italianas. O mesmo José de Alencar, ensaísta, romancista, deputado que chegou à Pasta da Justiça, publicava, em 14 de janeiro de 1855, uma crônica na Gazeta Mercantil, adiantando a programação dos festejos daquele ano e alertando para que “na tarde de segunda-feira, em vez do passeio pelas ruas da cidade, os máscaras se reunirão no Passeio Público, e aí passarão a tarde como se passa uma tarde de carnaval na Itália, distribuindo flores, confete e intrigando conhecidos e amigos”.

Hoje os festejos de rua estão limitados a blocos, no Rio de Janeiro como aqui em Vitória. As Escolas de Samba parecem monopolizar os festejos, ao menos em termos de visibilidade, em ambas as cidades. A tradição de desfile dos blocos e agremiações tem um ingrediente original em Salvador, que a diferencia dos demais lugares: o trio elétrico. Incorporado, aliás, ao auto-intitulado “maior bloco da terra”, o Galo da Madrugada, do Recife. Em ambos os casos, ou em ambas as sedes carnavalescas, pela necessidade de amplificação do som que conduz os foliões.

É interessante como em Olinda/Recife o carnaval é uma preocupação séria. Meio como que nas Escolas de Samba, onde se reverencia a “velha guarda” da comunidade, fundar lá um grupo carnavalesco qualquer rende reverência e homenagens ao fundador (a diferença é que as primeiras, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, são atualmente uma espécie de ONG, organizadas e funcionando de forma empresarial. Já os maracatus - de baque solto ou baque virado - elefantes, cordões, troças carnavalescas, ursos, bois, caboclos, blocos, as múltiplas formas de se brincar a folia em Pernambuco, tem organização muito menos ambiciosa). Cito, como exemplo, o caso famoso do garçon Isaías Pereira da Silva, o Batata, imortalizado no bloco que fundou em 1962 e que continua a desfilar na quarta-feira de cinzas pelas ruas e ladeiras de Olinda, anos depois de sua morte. Aliás, inúmeros são os blocos que sobem e descem as ladeiras de Olinda nos dias de carnaval. A impressão que colho de tantos anos de observação in loco é que, nessa época, mais de duas pessoas em Olinda seguindo juntas na mesma direção vira bloco.

Brincar o carnaval é resistir (não contra a Igreja Católica, que os excessos são purgados na Quaresma). Já exemplifico, para me fazer entender: mais ou menos na mesma linha do que fizera o chefe de polícia da Corte cinqüenta anos antes, o prefeito Pereira Passos deflagrou em 1904, nas escolas do Rio de Janeiro, uma campanha anti-entrudo. Não adiantou, como vemos hoje. Maracatus, rurais e urbanos (de baque solto ou virado, respectivamente) são cada vez mais estudados como formas de luta/resistência – tão ao gosto dos pesquisadores atuais - dos trabalhadores nos canaviais, seja em seus habitat de origem, seja deslocados para as periferias das grandes cidades de Pernambuco. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro divulgam para o mundo todo valores e elementos da cultura afro-brasileira. As de Vitória, saudadas pela Secretaria de Cultura como a maior festa popular do Estado, divulgam à população fatos históricos e tradições locais, desempenhando um serviço que pode, sim, ser considerado como de utilidade pública contra o pouco caso para com a nossa História. Tudo isso se faz brincando, e cuidando de manter viva uma tradição inquestionável do povo brasileiro. Apesar das ideologias e dos revisionismos históricos.

Se o que se pode recriminar individualmente na festa são os excessos, a falta de medida do que se deixa levar por falsas impressões, o simples fato de brincar o carnaval não é pecado nem atenta contra os bons costumes. Não é pouco apropriado nem depõe contra ninguém. Hoje como ontem. Ou as reputações de José de Alencar, Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio e tantos outros saíram alguma vez arranhadas dos préstitos e desfiles do seu tempo?