20 de fevereiro de 2011

O Acadêmico Inglês de Souza e a Presidência da Província do Espírito Santo

Ingles de Souza
A criação, em 1897, da Academia Brasileira de Letras, significou não só uma novidade no mercado livreiro da Capital federal, mas principalmente a institucionalização das tertúlias e dos encontros literários realizados por um seleto grupo de literatos nos cafés e livrarias da cidade. No entanto, para fazê-lo nos moldes de uma academia de letras, como a francesa, haviam de ser convidadas quarenta pessoas ligadas às letras, letrados e literatos, que passaram à história da Casa de Machado de Assis como os seus fundadores.

Assim, a Academia Brasileira de Letras passou a reunir, de alguma maneira, o que de mais representativo havia de contemporâneo, nessa área, no Rio de Janeiro da época. Como registrei em “Juristas e Literatos Acadêmicos” (2006, p.19) esse grupo literário era integrado não só por literatos; antes, por letrados, de todas as áreas, notadamente a jurídica. Mas mesmo estes, com militância na imprensa e obras publicadas. Fixemo-nos num deles - o fundador da Cadeira 28 da Academia Brasileira de Letras, um dos três deste grupo de fundadores da Academia nacional que teve sua vida ligada, em algum momento, ao Espírito Santo.

1. Inglês de Sousa:

Herculano Marcos Inglês de Souza, paraense de Óbidos, onde nasceu a 28 de dezembro de 1853, é precursor da estética literária Naturalista, que entre nós tradicionalmente é dada como inaugurada por Aloísio Azevedo. De fato, para a crítica mais esclarecida, seus romances O Cacaulista, de 1876, e O Coronel Sangrado, de 1877, antecipam de alguma maneira princípios que iriam nortear a prosa naturalista, como a investigação da interação do homem com o meio. No entanto, é curioso que, em termos formais, Inglês de Sousa só aderiria conscientemente à nova estética com seu romance O Missionário, de 1888 – aliás, o último que publicou, em 1891 - e seguindo os parâmetros fixados pelo próprio Aluísio Azevedo.

Jurista e literato, sua carreira pública se dividiu entre a advocacia, a política e a literatura, aliás, como a esmagadora maioria dos homens de gênio do Império. Neste sentido, seu sucessor Xavier Marques, fazendo-lhe o elogio ao assumir a cadeira que Inglês de Sousa deixava vaga na Academia Brasileira de Letras, diz que em sua personalidade “se desdobram, em invejável harmonia, os três aspectos que lhe possibilitaram o viver integralmente para as necessidades da sua época: as faculdades racionais do cultor da ciência, as energias afetivas do homem de ação e a potência imaginativa do homem de letras” (1936, p.97).

Ao menos no caso de Inglês de Souza - e especificamente no seu caso - se considera que a formação liberal e positivista do jurista lhe foi antes benéfica que maléfica no domínio da literatura, sendo fundamental para fazê-lo transcender os cânones da dominante estética literária romântica, num tempo em que a literatura nacional ainda estava presa aos ideais já abandonados, na França, desde a publicação da Madame Bovary, de Flaubert. Assim é que se torna um pouco forçado o lamento de Barbosa Lima Sobrinho, que no centenário do escritor desejava de público “[...] se pudéssemos ao menos libertar a memória do romancista Inglês de Sousa dos prejuízos, ou da influência da autoria dos livros de direito!” (no mesmo sentido, aliás, do que dizia Renan sobre a atitude do público para com a produção literária de um autor em mais de um gênero – ou, não exclusivamente na literatura em sentido estrito).

De fato, filho do desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa, do Tribunal da Relação de São Paulo, o escritor, após estudar no Pará, no Maranhão e no Rio de Janeiro, conclui os preparatórios no Recife e se matricula na Faculdade de Direito, que concluirá em São Paulo. Por parte de mãe descendia de uma família portuguesa do Algarve, vindo seu avô para o Pará em 1807. De um Inglês fala Eça de Queirós em seu romance A Capital!, que data de entre 1878 e 1900, o que atesta a notoriedade da estirpe em terras portuguesas até aquela data.

Advogado, professor de Direito Comercial na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, doutrinador nesta área da ciência jurídica, publicou em 1898 Títulos ao Portador no Direito Brasileiro, motivo da manifestação de Lima Sobrinho e da menção que a ele faz Alfredo Bosi como “perito em letras de câmbio” (1994, p.192).

Pouco depois de colar grau, em 1876, e já com romance publicado, foi convidado para redator de “O Diário de Santos”, para onde se mudara porque seu pai fora nomeado Juiz Municipal. Em São Paulo funda “A Tribuna Liberal”, que, com a ascensão do Partido, acabou por se tornar seu órgão oficial. Funda, também, a Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras, em 1878. No mesmo ano foi eleito Deputado à Assembléia Provincial paulista, onde apresentou e fez votar projeto de criação da Escola Normal, cujo regulamento redigiu.

Suas precoces qualidades de homem público o levaram à nomeação, pelo Conselheiro Saraiva, em 1881, para a presidência da província de Sergipe, aos vinte e sete anos de idade e já casado, desde 1877, com Dona Carlota Emília Peixoto, sobrinha-bisneta de José Bonifácio. Demitiu-se daquela presidência no ano seguinte, seguindo-se sua nomeação para a presidência da Província do Espírito Santo, quadra menos conhecida de sua biografia.

2. Na presidência da província do Espírito Santo:

Aos vinte e oito anos de idade chegava Inglês de Sousa ao Espírito Santo, para presidi-lo. Nomeado por Carta Imperial de 11 de fevereiro de 1882, prestou compromisso perante a Assembléia Provincial e assumiu a administração da província a 03 de abril, recebendo-a das mãos do 1.º Vice-Presidente, Tenente Coronel Alpheu Adelpho Monjardim Andrade e Almeida (Espírito Santo. Relatório de Governo, [...]1882). Aqui fez muito mais do que simplesmente reformar o ensino público, conforme se registra em suas biografias: saneou as finanças da província, cobrando impostos atrasados, emitindo títulos da dívida e proibindo outros endividamentos; procedeu a uma reorganização do serviço público, reestruturando secretarias, dando regulamentos ao serviço público e à Companhia de Polícia - a quem, por curiosidade, registre-se, dotou de novo uniforme.

Demonstrando grande energia e capacidade de trabalho, meticuloso, detalhista, foi do planejamento à execução, inspecionando e relatoriando todas as áreas da Administração Pública. Elaborou planejamentos para a área de logística, contemplando, por exemplo, a linha férrea Vitória X Natividade, a re-implantação da navegação para a Europa e o melhoramento das condições da navegação de cabotagem na província. Assinou o contrato para a construção da Estrada de Ferro Deslandes. Adotou medidas favoráveis à cultura - por exemplo, adquirindo livros e determinando a restauração e encadernação de exemplares do acervo da Biblioteca Pública, dando ordem para elaboração de um catálogo de todo o acervo, que ficou a cargo do Dr. Eliseu de Souza Martins, o fundador da instituição.

2.1 - Instrução pública:

Com relação à propalada reforma do ensino, a Resolução Provincial n. 31, de 20 de maio, concedeu-lhe autorização para tanto, fixando-lhe, no entanto, duas obrigações: 1) a manutenção no Atheneu dos preparatórios para matrícula nas Faculdades Superiores do Império e a criação de dois cursos normais, sendo um para professores e outro para professoras; 2) não despender, com a nova organização, mais do que se despendia com o antigo regime .

Para auxiliá-lo, a 24 de maio nomeou uma comissão para a elaboração de estudos que permitissem se desincumbir do encargo, comissão esta formada pelos Drs. Eliseu de Souza Martins, José de Mello Carvalho Muniz Freire, Francisco Gomes de Azambuja Meirelles, Alfredo Paulo de Freitas e o Capitão Manoel Rodrigues de Campos. Pelo regulamento que baixou a 15 de setembro a instrução pública na província foi devidamente reorganizada, passando professores e professoras a freqüentar cursos separados, mas sob administração única e com matérias lecionadas pelos mesmos mestres.

Por ato de 18 de outubro, nomeou o Dr. Eliseu de Souza Martins Diretor dos Estudos e Presidente da Congregação dos Lentes do Atheneu, cargos que exerceu graciosamente. Entre as nomeações de professores que realizou, merecem destaque a do Padre Francisco Antunes de Siqueira para a Cadeira de Latim e a do Bel. José Joaquim Pessanha Póvoa para a de História Universal e Noções Gerais de Economia Política, Estatística e Finanças.

Também da instrução elementar ocupou-se Inglês de Sousa. Constatando aqui o mesmo atraso que verificara em outras províncias no tocante ao ensino das primeiras letras, resolveu introduzir o contemporâneo método do professor João de Deus, denominado Cartilha Maternal, contratando para difundi-lo por toda a província o professor da Escola Normal de São Paulo Antônio da Silva Martins, cujo trabalho tivera oportunidade de conhecer naquela cidade.

2.2 – Condições da província:

Discorrendo no Relatório de Governo sobre as condições da província, Inglês de Sousa foi lisonjeiro com o Espírito Santo. Embora pequena, considerava-a “rica e próspera parte do Império”, o que devia, principalmente, a seus recursos naturais e à “excelente índole de seus habitantes”, vaticinando à província, ao fim de sua curta estada, “um futuro rico de prosperidade e digno da boa índole e patriotismo de seus filhos”.

Curioso é que, do alto de seus dotes de planejador, Inglês de Souza tenha sugerido a seu sucessor a mudança da Capital da província, de Vitória para um ponto central do território, ligado este ponto à antiga capital por meio de vias férreas, e assim a mantendo como entreposto natural de escoamento de toda a riqueza da terra. Citava como exemplos capazes de atestar o sucesso de sua sugestão as províncias de São Paulo e Paraná, onde as cidades de Santos e Paranaguá desempenhavam as mesmas funções geo-econômicas que propugnava para Vitória.

Como motivos para a providência sugerida, referia a situação geográfica e as condições de salubridade da Capital, “situada na encosta de uma montanha, apertada pelo mar em uma estreita língua de terra”; acrescendo a isto o fato de que “muito brevemente, e segundo o parecer dos entendidos, a água há de faltar para o abastecimento da população, principalmente na estação calmosa, ou pelo menos se há de reduzir irreparavelmente a quantidade suficiente para o consumo de uma população ligeiramente aumentada”.

Mas novamente eleito para a Assembléia Provincial de São Paulo, solicitou ao Imperador exoneração do cargo, o que conseguiu por Carta Imperial de 27 de novembro, passando então a presidência da província do Espírito Santo ao Dr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada Junior, a 09 de dezembro de 1882. Instalou-se novamente em Santos, então o segundo centro comercial do País, somando às suas atividades as de financista e advogado, chegando, mais tarde, à presidência do Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil.

3 – Menção ao Espírito Santo na obra de Inglês de Sousa:

Inglês de Sousa deixou o Pará, sua terra natal, muito cedo, não mais tendo retornado a ela.

No entanto, os temas amazônicos serviram de mote a toda sua produção literária, onde buscou o exame da interação do homem com as condições da terra, e em que medida estas condições o influenciavam. Sob a rubrica de “Cenas da Vida Amazônica”, escreveu, em Pernambuco e São Paulo, entre 1875 e 1877, seus já referidos O Cacaulista (publicado em Santos, em 1876, sob a forma de folhetim e com o pseudônimo Luis Dolzani), História de um Pescador (São Paulo, 1877) e O Coronel Sangrado (São Paulo, 1877).

Lúcia Miguel Pereira considera a obra literária de inglês de Sousa como um documento social onde a vida era sempre uma luta, “luta do tapuio contra o proprietário que o explora, na História de um Pescador”; luta do mulato ambicioso contra o branco que o não quer considerar seu igual, em O Cacaulista e O Coronel Sangrado, luta do indivíduo superior contra o meio mesquinho, em O Missionário” (1) .

Os Contos Amazônicos, de 1893, que publica já no Rio de Janeiro, pela Editora Laemmert & Co., incluem-se, também, no panorama temático que traçou para as “Cenas da Vida Amazônica”. O tema principal são as condições de vida na época da Revolução dos Cabanos, que assolou as províncias do norte entre 1835 e 1840, fazendo aproximadamente 40.000 vítimas. Silvestre José Rodrigues de Souza, seu avô, o Capitão Silvestre de um de daqueles contos (“O Donativo do Capitão Silvestre”) era Comandante Militar da vila de Faro e livrou essa vila e a de Óbidos de invasão iminente dos rebeldes, comandando expedição militar contra o reduto cabano de Curucucury.

Nesse livro, em meio a essa temática, que lhe era cara, é que faz ligeira menção ao Espírito Santo, de maneira a posicionar-se em questão que, posteriormente, viria a justificar até mesmo a criação do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo: a da naturalidade de Domingos José Martins, que, sabe-se, era contestada por Varnhagen, Tonellare e muitos outros (2). No conto “O rebelde”, Inglês de Sousa constrói o protagonista fazendo-o pernambucano, um dos rebeldes de 1817, “um soldado fiel do capitão Domingos José Martins, o espírito-santense”. Seria, talvez, uma singela homenagem à terra que o parece ter recebido tão bem, em que envidou tão bons esforços e a que vaticinara tão favorável futuro.

4 – O Acadêmico Inglês de Sousa:

Proclamada a República, preterido na nomeação para Governador do Amazonas, transfere-se para São Paulo, onde funda, sob os auspícios do Conselheiro Mayrink, o Banco de Melhoramentos de São Paulo, sendo eleito presidente da Companhia Agrícola Industrial e de Colonização de São Paulo e Diretor da Companhia Santista de Serviços Marítimos. Entretanto a morte de uma filha de seis anos leva-o a se mudar definitivamente para o Rio de Janeiro, em 1892. Reiniciando naquela cidade sua carreira de advogado, e com obras publicadas, é um nome bem conhecido nos meios literários. Por isto, seu nome foi sempre lembrado para as reuniões preparatórias à fundação da Academia Brasileira de Letras, tendo comparecido a todas elas.

Instalada a Casa, tomando assento na cadeira 28, para cujo patrono indicou Manuel Antônio de Almeida, participou ativamente de sua administração, enquanto vivo foi. Integrou a comissão encarregada de lhe elaborar o Estatuto, constituída em 1897. Foi seu primeiro Tesoureiro, eleito na Diretoria de Machado de Assis, também em 1897, pela unanimidade dos presentes. Reeleito sucessivamente para a Tesouraria até 1907, apresentou renúncia à função, passando a integrar a Comissão de Contas da instituição, até 1916. Nesse ano foi constituído advogado da Academia Brasileira de Letras, função esta onde veio a falecer, em 1918.

5 – O romancista de O Missionário:

A rigor, após a fundação da Academia Brasileira de Letras Inglês de Sousa publicou apenas Títulos ao Portador no Direito Brasileiro, em 1898, um clássico na época. Também suas lições na cadeira de Direito Comercial foram publicadas, na recolha de Alberto Boldini, sob o título Direito Comercial: preleções do Dr. Inglês de Sousa, sendo a 1.ª edição revista pelo mestre. Mas o ponto alto de sua obra literária é, sem dúvida, o romance O Missionário, cuja 1. edição é, como referido acima, de 1891.

Este romance, atualmente o mais famoso de sua autoria, é o responsável pela localização de Inglês de Sousa entre os expoentes da estética Naturalista. Para o próprio autor, citado por Martins (1996, p.380), tinha páginas a mais, mesmo após os cortes a que procedeu. As linhas mestras de análise desta obra são as traçadas por Araripe Jr., Wilson Martins e Afrânio Coutinho. Divergindo sobre a importância de Inglês de Sousa para o Naturalismo literário, às vezes, até mesmo para a história da Literatura brasileira, cada um deles se serve de parâmetros distintos.

Araripe Jr. reconhece que na primeira parte do livro “o escritor não tem outro intuito senão fotografar a vida sarapintada de um povoado de sertão”. Assim, “as épocas sucedem-se logicamente, de modo a produzir, no espírito do leitor, a ilusão dos movimentos coletivos como em um giróscopo tangido a toda a força” (1960, p.376). Cingindo-se, no entanto, ao falar da segunda parte (para ele a mais importante) a uma análise mais personalista, que se poderia dizer do próprio protagonista, fala no “fiasco de um apóstolo” (1960, p. 377).

Essa análise, no entanto, é refutada veementemente por Wilson Martins, que antes de tudo enxerga, como objetivo do romance, “o quadro social de uma pequena cidade brasileira no momento da ‘questão dos bispos’” (1996, p.380). Sem deixar de enxergar na missão pessoal do protagonista a sina de D. Quixote, Martins faz um paralelo entre O Missionário e o O Crime do Padre Amaro, de Eça, como apenas um dos argumentos que brande para atribuir a Inglês de Sousa uma “nada ambígua” posição a respeito do anticlericalismo, que era revivido com força na chamada “questão dos bispos”. De que, aliás, para o crítico, O Missionário foi a primeira expressão romanesca na Literatura Brasileira.

Já Afrânio Coutinho não afasta em nenhum momento o paralelismo do romance com O Crime do Padre Amaro, mas para ele “sem dispor do sarcasmo do romancista português, a índole polêmica do romancista brasileiro reveste-se da feição épica que permite associar O Missionário a La faute de l’abbé Mouret, não somente na semelhança das situações, mas principalmente no tom narrativo, sempre a querer resvalar para o grandioso, bem ao gosto de Zola” (2002, p. 82). É que as dúvidas que assaltam o Padre Morais em Silves também as tem o Padre Sérgio, cura de Artaud. Coutinho não deixa de registrar, no entanto, que a solução que ambos os autores dão às dúvidas existenciais e vocacionais de seus protagonistas é diametralmente oposta (idem).

6 – Conclusão:

Sem pretender a apreciação crítico-literária do romance O Missionário, aquele pelo qual Inglês de Sousa é conhecido e estudado hoje em dia, a menção a linhas tão díspares de análise serve para ilustrar o fato de que, aparentemente, os propósitos do autor ainda não foram de todo apreendidos (já que, sobre sua obra, ainda não existe um consenso entre os analistas). Da mesma forma, e por este motivo, sua importância para a história da Literatura Brasileira, a contrário do que acontece para com as letras jurídicas nacionais, ainda não está de todo delineada. Mas sempre há de persistir a análise que dele fez seu sucessor Xavier Marques na Academia Brasileira de Letras. Aliás, a Inglês de Sousa a Casa de Machado de Assis também deve o início de sua organização sistemática.

Quanto ao Espírito Santo, de fato pouco ficou de sua passagem por aqui, da passagem de uma personagem que teve atuação a nível nacional e que protagonizou com competência papéis de destaque nas áreas em que se propôs atuar, naqueles ricos tempos de transição do século XIX para o XX. Para nós sua projeção com relação ao futuro da Capital da então província parece ter-se escoado no tempo, e hoje uma providência como a que propôs se mostra de todo inviável. Mas o futuro auspicioso daquela província de 1882, vaticinado por ele, é o que tentamos construir diariamente. E neste sentido é que as atividades de administrador que aqui desempenhou, as observações que nos deixou a esse respeito (frutos de um “olhar estrangeiro” que em tão pouco tempo se afeiçoou à terra), deveriam ser mais conhecidas. Para assim, de alguma forma, poderem servir também de estímulo a essa construção. Foi, sem embargo, o objetivo deste texto.

REFERÊNCIAS

ARARIPE Jr., Tristão Alencar de. Prólogo a O Missionário, de Inglês de Sousa. In______ Obra Crítica de Araripe Jr. Volume II (1888-1894). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1960.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 42. edição. São Paulo: Cultrix, 1994.

COUTINHO, Afrânio (dir.). A Literatura no Brasil. Volume IV. 6. edição. São Paulo: Global, 2002.

ESPÍRITO SANTO. Relatório de Governo. Relatório com que o Exmo. Sr. Dr. Herculano Marques Inglez de Souza entregou no dia 9 de dezembro de 1882 ao Exmo. Sr. Dr. Martim Francisco de Andrada Junior a administração da Província do Espírito Santo. Vitória, 1882.

INGLES DE SOUSA, Herculano Marcos. O Missionário. 5. edição, 3. impressão. São Paulo: Ática, 2001

______Contos Amazônicos. São Paulo: Martin Claret, 2005

MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Volume IV (1877-1896). 2. edição. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996.

MARQUES, Xavier. Elogio de Inglês de Souza. Discursos Acadêmicos (1920-1923). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936.

NEVES, Getúlio M. P. Juristas e Literatos Acadêmicos. Revista da Academia Espírito-santense de Letras, pp. 13-27, 2006.

______ Nos noventa anos do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. In______ Estudos de Cultura Espírito-santense. Vitória: IHGES, 2006.


OTÁVIO FILHO, Rodrigo. Inglês de Sousa. Rio de Janeiro: ABL, 1955.

QUEIRÓS, Eça de. A Capital! (Começos duma Carreira). Edição crítica preparada por Luiz Fagundes Duarte; notas ao texto por Carlos Reis; revisão técnica Reinaldo Polito; posfácio Elza Mine. São Paulo: Globo, 2006.


NOTAS:

[1] História da Literatura Brasileira: Prosa e ficção (de 1870 a 1920); apud Rodrigo Otávio Filho, Inglês de Sousa (1. centenário de seu nascimento).

[2] A respeito, consulte-se meu “Nos noventa anos do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo”.


* Agradecimentos ao pessoal da Biblioteca Rodolfo Garcia, da Academia Brasileira de Letras, pelo acesso a fontes da Academia; à minha tia Marlene Guedes Pereira, professora de Literatura da Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, pela cessão da Obra Crítica de Araripe Jr.

(publicado na Revista da Academia Espírito-santense de Letras, p. 55/58, 2007)


17 de fevereiro de 2011

Renato Pacheco e sua visão pessoal da cultura capixaba

Há um ano fomos todos, em espírito, acompanhar Renato Pacheco a seu Porto Final. Não à pequena localidade de Baixo Guandu, terra natal de seu mestre Guilherme Santos Neves, e que emprestou título à antologia de sua obra poética publicada em 1998, mas aos portos do mar da baía de Vitória, a sua cidade que já há muito deixou de ser “só mar e morro”, como ele certa vez cantara em “Vista Geral de Vitória”, poema de 1948.

Vitória que desde 1928, ano do nascimento de Renato Pacheco, conheceu um desenvolvimento acelerado, como espelho do desenvolvimento acelerado que conheceu o estado do Espírito Santo nos últimos setenta anos. Observador e analítico, ele, como ninguém, observou e analisou a marcha da história nestas paragens. E observando e analisando, produziu obra ímpar, porque nem sequer ombreada, de compreensão e divulgação das coisas do Espírito Santo.

E como todas as coisas têm seu porto final, assim como a obra de uma vida é bom que também o tenha, Renato Pacheco pretendeu, resumindo lembranças, experiências e estudos realizados ao longo dos últimos cinqüenta anos, legar aos estudiosos das coisas da terra uma espécie de guia comentado do percurso deste Estado do Espírito Santo nessa seara que foi a sua constante área de cogitação e produção, que é a cultura capixaba.

Seu último trabalho, que ele, Presidente de Honra, desejou ver publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, é um apanhado do quanto se produziu aqui ao longo de quinhentos anos em termos de cultura. Não se trata de cultura no sentido antropológico do termo, mas num sentido mais amplo, de produção de bens “palpáveis”, e a cultura capixaba foi abordada por ele, seguindo a lição de Rossini Tavares de Lima, no ABC do Folclore, de 1952, subdividindo sua matéria de estudo em cultura erudita, de massa e popular.

Não era empreitada para qualquer um. Ao menos não para um simples cronista. Esta primeira sistematização de quanto se produziu em termos de cultura no Espírito Santo, e não só por ser a primeira, deveria ser empreitada para quem pudesse compreender e revelar os mecanismos de produção e assim analisar os resultados produzidos. Tarefa para verdadeiro intelectual. E seu derradeiro trabalho, “A CULTURA CAPIXABA: UMA VISÃO PESSOAL” se encerra com citação de Edward W. Said, o que é emblemático. Renato Pacheco foi um verdadeiro intelectual, e Said é um dos que, entre essa classe, vem se preocupando com o papel do intelectual na sociedade.

Como propugna Said - mas muito antes dele - Renato Pacheco foi um intelectual engajado. Cito, por exemplo, que sua crença no Direito como sistema mais perfeito de regulação social, como constatei em “Considerações à volta do Pensamento Jurídico de Renato Pacheco”, publicado n' O Reino Conquistado, pelo IHGES, em 2003, o leva ao resgate da história de Pedro Leppaus, ex-meeiro de vítima de um homicídio ocorrido em 1954, e que a ele foi injustamente atribuído. Assim, fez publicar em 1985 Pedro Leppaus: erro judiciário contado ao povo. Não se pode notar aqui uma certa inspiração no exemplo de Voltaire, na sua luta pela revisão dos processos Calas, em 1765, e Sirven, em 1771? Ou de Zola, na sua luta pela revisão do caso Dreyfuss, na célebre carta de 1898?

Renato Pacheco foi igualmente engajado nessa sua última obra, de resgate histórico, de análise histórico-sociológica e de crítica à atividade pública. No passado o fora, por exemplo, fazendo propostas de planejamento, em sentido amplo, para a cultura local, em sua passagem pela Fundação Cultural do Espírito Santo e pelo Conselho Estadual de Cultura. Não poderia deixar de sê-lo agora, e introduziu entre as páginas d’ “A CULTURA CAPIXABA” uma crítica ao papel do estado como fomentador de políticas culturais, e particularmente ao papel desempenhado pelo Estado do Espírito Santo na produção cultural da terra. E ao nos trazer ao “A CULTURA CAPIXABA” os resultados de sua meditação nessa seara específica de seu labor pelo Espírito Santo, essa passagem do livro pode ser tida pelos da área, os produtores culturais, como o ponto alto da derradeira obra de Renato Pacheco.

Mas a crítica séria deve fundar-se na compreensão do processo que é objeto dessa crítica. E ele tinha uma ampla compreensão desse processo, como já o dissemos, fundamento, aliás, de sua autoridade no criticar. E nos procurou legar essa compreensão, realizando síntese histórica da cultura produzida no Espírito Santo, desde os seus primórdios. O que, da mesma maneira, poderá ser considerado o ponto alto de sua derradeira obra pelos da área, os historiadores e os sociólogos da cultura.

Interessante é que, utilizando-se de seus famosos arquivos pessoais e de sua decantada memória, registra uma infinidade de fatos – e detalhes desses fatos – acontecidos na vida cultural do estado ao longo do século XX. E assim o leitor não comprometido com preocupações de cunho científico e literário pode ler a derradeira obra de Renato Pacheco como uma espécie de grande reportagem, a que não faltam, sequer, os detalhes afetos ao colunismo social - por exemplo, revelando que a miss tal do ano tal passou a ser a senhora fulano de tal. O que vai dar a estes leitores motivos para considerar essas passagens como o ponto alto da obra.

Ele mesmo romancista, poeta, ensaísta - escritor, enfim - traz às páginas de “A CULTURA CAPIXABA” um resumo do estudo sobre a história do livro no Espírito Santo, que anteriormente fizera em “Introdução à História do Livro Capixaba”, publicado na coletânea Estudos Espirito-santenses, pelo IHGES, em 1994. Aliás, aqui pode-se ver um exemplo acabado da forma de atuação do intelectual Renato Pacheco: ao lado do investigador, foi também o empreendedor que, inconformado com um comentário jocoso de Monteiro Lobato (para quem o Espírito Santo, nos idos de 1919, parecia “uma ficção geográfica”, onde não havia uma só livraria), tentou iniciar aqui, em 1951, uma editora comercial que chegou a publicar cinco livros, mas logo encerrando as atividades, por falta de adequada estrutura empresarial. E da mesma forma os interessados na pessoa humana de Renato Pacheco, nos seus traços de caráter e na sua biografia deverão considerar esses trechos como o ponto alto de sua derradeira obra.

Isto é, pode-se ler sua derradeira obra sob vários enfoques, e com interesses diversos. Intelectual multifacetado, homem de múltiplos interesses como o chamei ao dar notícia de sua passagem pelo IHGES, em “50 anos de presença de Renato Pacheco no IHGES”, publicado no n.° 58 da Revista, de 2004, sempre teve a capacidade de atrair a atenção do estudioso tanto quanto a do homem do povo, a quem falava de perto. Tanto que, como os estudiosos, o homem do povo fez também questão de homenageá-lo por ocasião de seu falecimento, na bela reunião dos grupos de cultura popular que para isto vieram se apresentar no Parque Moscoso em plena Quaresma.

É fato que, como estudioso e ele próprio engajado no processo de produzir cultura entre nós, Renato Pacheco teve seu porto seguro nesta Casa do Espírito Santo. O Instituto cuja feição ajudou a moldar, cujos destinos ajudou a dirigir, cuja produção científico-literária ajudou a elevar, é o repositório maior de sua obra, como constatei no referido “50 Anos de Presença de Renato Pacheco no IHGES”. Grande parte de seus estudos e de sua produção cultural como objeto saiu daqui, e aqui está guardada. Sua atuação generosa nesta casa foi imprescindível para o atual momento por que passamos, e esta constatação dispensa maiores fundamentações. Não poderia ser de outro editor que não o IHGES a publicação da derradeira obra de Renato Pacheco.

A visão pessoal que Renato Pacheco nos deixa da cultura capixaba é da mesma forma generosa. Racionalista, levando ao extremo a concepção do cogito que opôs Descartes a Santo Tomás de Aquino, que opôs duas maneiras opostas de pensar o mundo, Renato Pacheco era também o agnóstico que nos recomendava a Deus sempre que saíamos em excursão pelo interior para algum compromisso pelo Instituto. Da mesma forma crítico, desmistificador, o livre pensador até certo ponto iconoclasta que se nos revelou n’ O Macaco Louco, publicado pelo IHGES, em 2000, é o mesmo que não se furtou a listar todos quantos se ocupam de alguma maneira da atividade de produção cultural neste estado. E isto nas mais diversas áreas, denotando sua incansável curiosidade, seu rigoroso método e seu cuidadoso conhecimento dos acontecimentos contemporâneos.

Cito exemplo: ao lado de juristas de escol nestas terras, como o foram um Afonso Cláudio, um Carlos Xavier Paes Barreto, um Eurípides Queiroz do Valle, de historiadores renomados, como Léa Brígida Rocha de Alvarenga Rosa e Miguel Depes Tallon, Renato Pacheco não teve pudor na inclusão do meu nome na referida obra. É o seu traço de generosidade sobressaindo ao do crítico, de incentivo constante aos que de alguma forma tentam fazer alguma coisa. Conhecedor das dificuldades, tratava de estimular, de ajudar, de elogiar e de criticar – tudo isto já tendo visto acontecer comigo próprio, ao levar até o mestre algum trabalho para sua apreciação.

A visão pessoal que Renato Pacheco nos deixa da cultura capixaba é uma visão generosa, repito. Consciente das fragilidades desta terra, fruto dos condicionamentos históricos que lhe foram impostos, demonstra saber lidar com estas fragilidades ao fazer análise de conjunto. Consciente da fragilidade humana demonstra saber lidar com elas, fazendo críticas impessoais às pessoas. Consciente de suas próprias limitações nos dá testemunho de desprendimento ao pretender, de maneira despretensiosa, simplesmente nos indicar um caminho a seguir. O que considero o derradeiro exemplo de seu engajamento como intelectual, de sua vontade de interferir ativamente no melhoramento da sociedade em que viveu.

A produção de Renato Pacheco chegou a seu porto final. O seu legado não, porque sua produção passará a ser cada vez mais estudada, dissecada, analisada. E dessa investigação é que nascerão novas vertentes de estudo, novas facetas de interpretação, sem dúvida novas maneiras de ver e de compreender a cultura capixaba. Como também não há dúvida de que essa tarefa será em grande parte facilitada por ter-nos deixado o mestre, mais uma vez, como ao longo dos últimos cinqüenta anos, sua visão pessoal a respeito.

É o início de nosso percurso, agora sem ele para levar o farol, até a um porto que, longe de ser final, seja seguro, aliás, como ele sempre foi para nós pelo seu exemplo. Na “Oração Anarquista”, poema que compõe as “Lamentações de Antão Reis”, um de seus três heterônimos, propugnou: “Senhor, é preciso passar meio século/ sem nada, mas nada mesmo, escrever/ deixando virgens toneladas de papel.” Não dando ouvidos ao velho Antão Reis, não o fez o ortônimo Renato Pacheco. Felizmente para todos nós, os admiradores de sua obra.

Praia da Costa, março de 2005

(texto de palestra proferida no IHGES em abril/2005; publicado originalmente em Estudos de Cultura Espírito-santense. Vitória: IHGES, 2006)


16 de fevereiro de 2011

Notas práticas de Direito Militar para os que não atuam na Justiça Militar


1) Justificativa:

As tentativas de extinção da Justiça Militar estadual são recorrentes, por motivos ideológicos. No entanto, enquanto esta existir (já são mais de sessenta anos de previsão constitucional de sua existência), pela estrutura da organização judiciária do Espírito Santo o magistrado está sempre sujeito a atuar numa atribuição delegada dessa justiça especializada, o que ocorre, por exemplo, em plantões judiciários, na execução de penas, no cumprimento de cartas precatórias. Problema de relevo se coloca, também, quando o magistrado decide de sua competência no caso concreto, já que a atuação do juízo comum decidindo uma questão especializada é, a princípio, nula, por incompetência absoluta do órgão prolator.

2) Justiça Militar: idéias básicas que norteiam sua atuação:

A Justiça Militar estadual é prevista no art. 125, §§ 4.º e 5.º da CF e tem competência para julgar integrantes das corporações militares estaduais (Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar) nos crimes militares definidos em lei e nas ações judiciais contra atos disciplinares militares. O crime se diz militar quando, previsto no Código Penal Militar, não esteja previsto em outra legislação (crimes militares próprios) e quando previstas da mesma forma no CPM e em outras legislações, desde que o agente a pratique nas situações previstas no art. 9.º do Código Penal Militar (crimes militares impróprios). Assim, pretende-se um controle sobre a atuação do agente militar; no caso específico das Corporações Militares estaduais, o controle é atribuído pela Constituição Federal a um órgão judiciário central, a Auditoria de Justiça Militar, e não aos órgãos judiciários a quem os agentes militares prestam o serviço, aquele de que emanam as detetminações e eventuais mandados a serem cumpridos.

Cabe, aqui, registrar algumas idéias básicas: a primeira é que a força policial é o braço armado do Estado que, em última análise, faz cumprir uma decisão judicial; assim, uma decisão afrontosa aos princípios informadores da Administração Militar pode reverter contra o próprio Poder Judiciário, já que a Polícia Militar tem, entre suas atribuições, a preservação da ordem pública (art. 144, § 5.º, da CF) - para isto, também, assegurando o exercício dos poderes constituídos (art. 3.º, alínea “a”, do Dec. Lei 667/69).

A segunda é que os militares, estaduais e federais, são servidores públicos diferenciados, e quem introduz essa diferença é a própria Constituição Federal, ao tratar de ambas as espécies de servidores em sedes distintas. Assim, a determinação judicial de isonomia formal entre uns e outros é, em última análise, inconstitucional, não sendo lícito ao Poder Judiciário afrontar a Constituição Federal.

A terceira é que as instituições militares, estaduais e federais, são organizadas com base na hierarquia e disciplina (com relação às primeiras, art. 42 da CF), que se traduzem, a hierarquia, na ordenação da autoridade em diferentes níveis dentro da estrutura da Força (art. 14, § 1.º, da Lei 6.880/80, Estatuto dos Militares) e a disciplina, na rigorosa observância e no acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que ordenam o organismo militar e coordenam seu funcionamento (art. 14, § 2.º, da citada legislação). Se estes pilares organizacionais são comuns a outras instituições estatais, por exemplo, a Polícia Civil, na organização militar, muito mais hierarquizada em graduações e postos, a sua observância é imprescindível para que a organização continue funcionando.

A quarta e última idéia básica que se deve lembrar é que é princípio geral de direito que o ato do agente ou do servidor público tem presunção juris tantum de validade. É esta presunção de validade que se traduz, em matéria criminal, na causa excludente do estrito cumprimento do dever legal, que determina a absolvição do policial militar sempre que se verifique não haver excesso na sua atuação, ou sempre que o Ministério Público não consiga provar esse excesso.

3) Justiça Militar: problemas práticos de competência:

3.1 – Criminal:

A Justiça Militar não julga a pessoa do militar, mas a função militar. A única exceção a este princípio é, entre nós, de caráter constitucional: ao instituir a competência do Tribunal Popular do Júri sobre a do Conselho de Justiça Militar no julgamento do crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil, a Constituição Federal determina o deslocamento de competência para o primeiro apenas e tão somente quando a vítima for civil. Demais critérios, como, por exemplo, o de estar ou não o agente em serviço (critério apenas jurisprudencial, tratando-se de interpretação da alínea “a” do inciso II do art. 9.º do Código Penal Militar, que dispõe de maneira diversa) são infraconstitucionais e assim não devem distinguir onde a própria Constituição Federal não distingue (a propósito, lição de Damásio de Jesus, in Competência para julgamento de Crime Militar doloso contra a vida, disponível no site http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10869, acesso em 02/03/2010, fundamentando-se o autor em v. Acórdão do STF no CC n.º 7.071/RJ, rel. Min. Sydney Sanches).

Em matéria de competência, aliás, a da Justiça Militar pode parecer complexa para o observador não atento. No entanto, toda a complexidade vem exatamente da interpretação jurisprudencial da alínea “a” do inciso II do art. 9.º do CPM, que dispõe, muito simplesmente, ser crime militar o praticado por militar da ativa contra militar da ativa. Ou seja, o que não é inativo, aposentado (na organização militar, o da reserva remunerada e o reformado – diferença de tempo de inatividade).

Critério jurisprudencial desenvolvido pelo STJ foi o de investigar se o militar atua em serviço, ou na função policial militar, para decidir sobre a competência da Justiça Militar. Mas o juiz de direito que decide, na prática, sobre competência para julgamento do caso concreto deve levar em conta um outro princípio de direito: o de que a competência comum é residual com relação à competência especializada. Ou seja, será de competência do juiz criminal comum o que não for de competência do juiz criminal especializado, seja o Tribunal Popular do Júri, seja o Juízo da Justiça Militar. Assim, e pela especialização, cabe à justiça especializada se pronunciar primeiro sobre sua competência, ouvido o Ministério Público – que tem atuação una, embora reconhecida a independência funcional de seus agentes.

Na prática, estando o militar em serviço (fardado, escalado), sem dúvida comete, a princípio, crime militar e deve ser julgado pela Justiça Militar (salvo situações e circunstâncias muito específicas, como ir tratar de assuntos particulares, p. ex.). Mas estas situações específicas, pelo motivo mesmo de sua especificidade, devem ser declaradas pela justiça especializada, devendo, mesmo na dúvida, haver a remessa a esta.

Aparentemente um pouco mais complicada é a situação do militar que, mesmo de folga, age na função policial militar. É o caso, por exemplo, do policial militar que, passando na rua com a esposa, presencia a prática de um delito e age por imposição legal, já que não se pode omitir nesta situação. Comete, a princípio, e por isto mesmo, crime militar, e deve ser julgado na Justiça Militar, salvo situações e circunstâncias muito específicas, exceções estas que, pela especificidade da situação, devem ser declaradas pela justiça especializada.

Com relação a inativos, qualquer que seja a situação em que cometa crime militar contra militar em serviço ou agindo em razão da função, deve ser julgado pela Justiça Militar.

Por outro lado, se o delito for cometido dentro de estabelecimento sob administração militar (quartel, uma viatura policial) não há qualquer dúvida da competência da Justiça Militar, em qualquer caso, à exceção do constitucional crime doloso contra a vida de civil.

Problema de competência que se coloca com regularidade é o da legislação especializada, como exemplos mais recentes, lei de tóxicos e lei Maria da Penha. Nestes casos, o critério de competência pelo local da infração (ratione loci), nunca pode ser ultrapassado: se o crime militar foi cometido em local sob administração militar, a exemplo de quartéis, ou durante operações policiais, a competência é da Justiça Militar. Não tendo sido cometido em local sob administração militar, o raciocínio é quanto ao agente estar ou não na função policial militar, ou estarem presentes no delito circunstâncias afetas à função, como graduações e patentes.

Conseqüência óbvia da especialização jurisdicional em matéria penal militar é a nulidade do julgamento de policial militar por crime militar nos Juizados Especiais Criminais. Ao que não se convence em contrário do fato da atribuição constitucional de competência à Justiça Militar (lesões corporais, constrangimento ilegal e ameaça, p. ex. são crimes militares definidos em lei, arts. 209, 222 e 223, respectivamente, do CPM), nem da disposição legal que impede expressamente este julgamento (art. 90 – A da Lei 9099/95), tenha em mente que não é lícito, à luz dos princípios constitucionais da hierarquia e disciplina que regem a instituição militar, que um soldado ou um cabo agrida um sargento, ou um tenente agrida um capitão ou coronel - o que, como se pode imaginar, repercute internamente de maneira muito desfavorável - sem qualquer conseqüência mais grave para ele que o cumprimento de um acordo.

Ainda que haja respeitáveis decisões em contrário, a atribuição de insignificância, de bagatela ou de menor potencial ofensivo a crime militar – decisões estas que cabem sempre à Justiça Militar, pelo princípio da especialização - é uma exceção, pena de inviabilização do funcionamento da organização. De qualquer maneira, sempre que cabível existe previsão legal expressa para tanto (p. ex., o § 6.º do art. 209 do CPM, que determina que a lesão corporal levíssima poderá ser considerada mera transgressão disciplinar)

3.2 – Cível:

A Emenda Constitucional n.º 45/2004 ampliou a competência da Justiça Militar estadual, atribuindo-lhe, também, pelo juiz singular, o julgamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares (art. 125, § 4.º). A decisão de qualquer pedido sobre esta matéria pela justiça comum estadual é nula, por incompetência absoluta – como vem sendo decidido pelo Egrégio TJES (p. ex., na Apelação Cível 024.990.106.692).

Ato disciplinar militar é o que impõe sanção disciplinar ao militar, nos termos dos Regulamentos Disciplinares respectivos. Assim, e na prática, se o pedido posto na inicial for de anulação ou de declaração de nulidade de pena de detenção ou de pena de demissão do serviço ativo (reforma) ou das fileiras da Corporação (licenciamento ou exclusão), ou seja, se a inicial se referir a processo administrativo disciplinar militar (de que são espécies o PAD/RS, PAD/RO, Conselho de Disciplina e Conselho de Justificação) a competência para conhecer do feito é da Justiça Militar.

Com relação a improbidade administrativa, trata-se de uma outra esfera legal de responsabilização do servidor, esfera esta não atribuída expressamente pela Constituição Federal à Justiça Militar porque não há punição imposta ao militar por seu Comando, não há ato disciplinar militar. Entre nós o Egrégio TJES já teve oportunidade de decidir várias vezes conflitos negativos de competência envolvendo esta matéria (p. ex. nos CC 100070011398 e 100080021981), sempre determinando a competência da Vara da Fazenda Pública Estadual. Dúvida, aliás, já não pode persistir a respeito, ante o recente julgamento, pelo STJ, do CC 100682 / MG, em que a competência da justiça comum foi expressamente determinada.

4) A prisão em flagrante de militar por crime militar:

Vez ou outra ocorre, nos plantões judiciários da Capital, a comunicação de prisão em flagrante delito de militar pela prática de crime militar, o que, na forma da Constituição Federal, deve ser levado a conhecimento do Poder Judiciário. Na maioria das vezes, virá também o pedido de liberdade.

A prisão será desde logo relaxada pelo juiz se verificar que esta não é legal (art. 224 do CPPM). Incluem-se aí entre as ilegalidades possíveis não só requisitos formais do Auto de Prisão em Flagrante Delito, mas também estar ou não o agente em situação de flagrância (art. 244 do CPPM), a manifesta inexistência da infração penal militar ou a manifesta não participação do conduzido na infração (art. 247, § 2.º do CPPM).

Mantido o flagrante, a liberdade provisória será concedida nos casos do art. 270 do CPPM, a saber: a) no caso de infração culposa, salvo nos crimes contra a segurança externa do País; b) no caso de infração punida com pena de detenção não superior a 02 anos, exceto casos de crime contra a autoridade e disciplina militar, listados no dispositivo.

Não existe, na legislação processual penal militar, a liberdade provisória por não estarem presentes os requisitos que levariam à decretação da preventiva. Para os que consideram ser direito do acusado este exame, em nome do princípio constitucional da liberdade, os requisitos a serem observados serão, então, os dos arts. 254 e 255 do CPPM, pela especialização da matéria, e não os do CPP comum.

Assim, o militar terá sempre residência fixa, porque não o tendo, ou não a informando a seu Comando, cometerá transgressão disciplinar. O militar, via de regra, terá bons antecedentes, porque sua condenação criminal o submeterá a Conselho de Disciplina (se praça) ou de Justificação (se oficial). Assim, os regulamentares “bons antecedentes, radicado no distrito da culpa” muito pouco significam para formar o convencimento do julgador, sendo, mesmo, inerentes à condição de militar.

Os requisitos para decretação da preventiva, expressos no art. 255 do CPPM são: a) garantia da ordem pública; b) conveniência da instrução criminal; c) periculosidade do indiciado ou acusado; d) segurança da aplicação da lei penal militar; e) exigência de manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina militares, quando ficarem ameaçados ou atingidos com a liberdade do indiciado ou acusado.

De se comentar que a prática de ilícito por policial militar é, a princípio, atentatória, por si só, à ordem pública, simplesmente porque é seu dever constitucional preservá-la, não atentar contra ela. Sobre a conveniência da instrução, possível intimidação de testemunhas por militares significa, em tese, ameaça muito mais palpável ao civil que a praticada pelo réu comum, por motivos óbvios. Quanto à periculosidade do agente, é de ser aferida no caso concreto, com informações reais, e, se não documentais, devidamente submetidas ao contraditório. A aferição quanto à segurança da aplicação da lei penal militar, como a comum, depende, também, do exame de critérios objetivos, sendo muito mais difícil, aqui, a presunção pelo julgador de que o acusado possa se evadir do distrito da culpa. Por último, sendo a Administração Militar sujeito passivo, mediato ou imediato, no crime militar, a prática do delito pode ser atentatório, pelas circunstâncias, às normas de hierarquia e disciplina na Corporação.

5) A deprecata de atos à justiça comum:

A deprecata de atos processuais está expressamente prevista no Código de Processo Penal Militar (citatória, arts. 283 e 284; inquiritória, arts. 359 e 360). Algumas questões práticas:

Em primeiro lugar, e no atual estágio dos debates a nível nacional, a Lei 11.719/2008, que altera o rito no processo penal comum, não introduziu alteração no rito do processo penal militar. É que, nada dispondo a legislação respeito, vige aí também o princípio da especialização, não se podendo utilizar subsidiariamente normas do processo penal comum no processo penal militar a não ser em caso de lacuna neste, e a teor do art. 3.º do CPPM (neste sentido, aliás, da não utilização das disposições do processo penal comum na Justiça Militar, já decidiu a Egrégia 1.ª Câmara Criminal do TJES, nos autos da Apelação Criminal n.º 024070662242);

A segunda é quanto à competência do juízo deprecado para interrogar o acusado, à vista do disposto no § 5.º do art. 390 do CPPM: com a alteração introduzida na Justiça Militar pela EC 45/2004, apenas metade, aproximadamente, das ações penais são decididas pelo Conselho de Justiça Militar, não fazendo sentido se utilizar o dispositivo acima no caso de ação penal a ser decidida pelo juízo singular da Auditoria de Justiça Militar. Ainda nas ações penais de competência do Conselho de Justiça Militar, não existe óbice ao cumprimento da deprecata, porque o Conselho de Justiça terá oportunidade de reinterrogar o acusado, se considerar necessário, por ocasião da sessão de julgamento, a que este último obrigatoriamente comparecerá, constando a deliberação em ata;

A terceira, quanto ao cumprimento da diligência em si, o fato de que, a teor do art. 352 do CPPM, a testemunha não se poderá limitar à simples declaração de que confirma o depoimento que prestou na esfera policial. Depoimentos assim lavrados, em que as partes não se dispõem a fazer outras perguntas, podem acarretar a absolvição do acusado por insuficiência de provas, ante a deficiência na instrução do feito.

(publicado na Revista In Limine, Vitória, agosto de 2010, p. 04/08)

13 de fevereiro de 2011

O Juiz de Direito na Justiça Militar Estadual


1) O Órgão Judicante Originário: O Conselho de Justiça Militar:

A respeito da desconhecida Justiça Militar, o que geralmente se sabe é que neste ramo especializado da jurisdição o órgão julgador é colegiado, composto por juízes civil e militares, na forma de um escabinato. Corolário do princípio geral do julgamento do acusado por seus iguais, a composição do órgão vem atender à especificidade da função militar, que não comporta comparação com outras profissões especializadas simplesmente por causa de sua gritante singularidade: o militar é o único servidor público a quem o Estado permite o uso de arma, e o único de quem exige o cumprimento do dever inclusive com o sacrifício da própria vida (art. 27, inciso I, da Lei 6.880/80, Estatuto dos Militares).

Assim, não só ideário e valores desta espécie de servidor são de difícil apreensão por quem não os compartilhe, também as técnicas (potencialmente danosas) de sua atuação regular o são. Junte-se a isso o fato de que a instituição militar tradicionalmente se mantém com base na hierarquia e disciplina, seus pilares básicos, e que a instituição da espécie de delitos chamada militar nada mais faz que cuidar de defendê-la de atentados praticados por agentes seus integrantes ou não (neste último caso apenas na Justiça Militar da União, por imperativo constitucional).

Explica-se a instituição do chamado Conselho de Justiça Militar: não é razoável se exigir do juiz de direito conhecimentos práticos tão especializados, nem raciocínio baseado em ideário formado numa realidade cotidiana – a da caserna – que nem de longe é a sua. Por outro lado, por imperativo democrático ocorre a exigência da legitimação de uma ordem jurídica derivada de procedimento em que não há possibilidade de participação do destinatário: a lei penal militar, bem como os regulamentos disciplinares, as normas procedimentais do âmbito castrense, têm muito pouca possibilidade de mutação por influência direta do seu destinatário, seja isoladamente ou como grupo, a contrário do que ocorre com, entre outras, a lei civil. Este estado de coisas exige então a legitimação de tal ordem jurídica numa segunda fase, a da decisão, o que mais se conseguirá quanto mais esta for proferida por julgador igual ao seu destinatário – idéia já preconizada por Hegel, em seu Fundamentos da Filosofia do Direito, e desde então aperfeiçoada por outros não menos considerados, a exemplo de Habermas .

Com base nisto é que (em momentos de normalidade institucional) a lei brasileira, sucessora da lei portuguesa, cuidou de prestigiar velhíssimas tradições, que já o eram na época do direito romano, e deu assento, junto ao magistrado de carreira, aos comandantes das forças a que pertence o acusado para assim buscar uma decisão o mais possível próximo do legítimo (não se cuidando, aqui, apenas do sentido formal, o de decisão proferida por quem tenha competência legal para expedi-la, pensa-se estar claro).

Os Conselhos de Justiça Militar que atuam nas Auditorias Militares, federais e estaduais, são chamados Permanentes ou Especiais, conforme se destinem ao julgamento das praças ou oficiais das Forças Armadas ou das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal). Na esfera federal sua composição está prevista no art. 16 da Lei 8.457/92, Lei de Organização Judiciária Militar da União (LOJMU), enquanto que suas atribuições estão traçadas no art. 27 da referida legislação.

Diferentemente da antiga redação da Lei de Organização Judiciária do Espírito Santo (Lei Complementar 234/2002), que adotava expressamente aquela regulamentação na composição (art. 79) e no funcionamento dos Conselhos de Justiça na Auditoria Militar do Espírito Santo (art. 80), a atual redação remete à legislação federal apenas no que pertine à composição do órgão (art. 79), adotando-se as disposições daquela também no que diz respeito a atribuições e ao funcionamento dos Conselhos por questão de tradição, e na ausência de regulamentação específica.

2) O Juiz Auditor:

Chamado até hoje Juiz Auditor, no Estado do Espírito Santo o juiz de direito que atua na Justiça Militar estadual é um juiz de direito da Justiça Estadual, de Entrância Especial, eis que a sede da Auditoria de Justiça Militar é a Comarca da Capital (art. 51, letra “d”, da Lei 234/2002). Esta disposição foi inaugurada na Lei de Organização Judiciária de 1982, eis que a lei anterior, de 1968, instituía uma carreira separada de Juiz Auditor Estadual – que, de resto, não chegou a ser implantada entre nós (conforme, a respeito, meu “A Justiça Militar Estadual do Espírito Santo” in Espírito Santo: Estudos Jurídicos. Vitória: s/n, 2005).

Estamos em que, a contrário do que por aí se comenta das recentes alterações constitucionais introduzidas pela Emenda Constitucional n. 45/2004, a denominação juiz auditor – denominação tradicionalmente dada ao juiz togado componente de um escabinato - se mantém quando o Juiz de Direito da Justiça Militar encontrar-se compondo o Conselho de Justiça Militar. Esta denominação, aliás, foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal, que tem a missão de guarda da Constituição. Por exemplo, no julgamento do HC 85720/RO, em 14/06/2006, quando o relator, Ministro Eros Grau, decidiu que pode haver a acumulação de cargos de juiz auditor da Justiça Militar e juiz de direito da Justiça Comum Estadual.

As funções judicantes principais do juiz auditor são a de dirigir a atividade de produção de provas no processo penal militar durante a fase de instrução (incisos IV, V e VI do art. 30 da LOJMU), relatar os autos na sessão de julgamento e redigir a sentença (inciso VII do art. 30 da LOJMU). Além disso, tem competência decisória na fase de apuração, mantendo e relaxando prisão em flagrante do indiciado, bem como decretando, revogando e restabelecendo sua prisão preventiva (inciso III) e recebendo ou rejeitando a denúncia do Ministério Público Militar ou mandando arquivar inquérito policial militar (inciso I). Sua atribuição de diretor da atividade de produção de provas lhe comete, também, a decisão acerca de outras constrições judiciais, como a busca e apreensão e a quebra de sigilos, fiscal, telefônico e bancário.

Os arts. 132 e seguintes do CPPM lhe atribuem o processamento da argüição de suspeição, própria e dos Juízes Militares, para remessa, no caso do não reconhecimento, ao Tribunal de Justiça. No art. 138 do mesmo diploma, o processamento e decisão da argüição de suspeição do promotor de justiça militar, e no art. 140, as de peritos, intérpretes, funcionários e serventuários da Justiça Militar, que serão decididas, nos dois casos, de plano e sem recurso.

Mas dentre suas funções, a EC 45/2004 atribuiu-lhe a até então inédita de presidir o Conselho de Justiça Militar (o que veio diferençar, entre Auditorias federais e estaduais, a incidência da norma do art. 16 da LOJMU), cabendo-lhe, a partir de então, desempenhar também as funções atribuídas no art. 29 daquela legislação ao Presidente do colegiado. Ou seja, o Juiz Auditor passou de direito a presidir e conduzir os trabalhos nas sessões de instrução e nas de julgamento, abrindo-as, concedendo a palavra às partes e a cassando no caso de manifestação desrespeitosa, e proclamando o resultado do julgamento proferido pelo Conselho de Justiça Militar. Passou, também, a exercer a função de policiar a sessão, mantendo a ordem e regularidade dos trabalhos e mandando retirar do recinto pessoas que a perturbem ou estejam armadas (aliás, como em todos os outros ramos de atuação jurisdicional do juiz de direito).

Independente das disposições de direito até então vigentes, de fato a maioria dos oficiais Presidentes de Conselhos de Justiça Militar deixava estas atribuições a cargo do Juiz togado, mesmo mantendo de direito a função de presidir, que na prática só exerciam nos raríssimos casos de desentendimento mais grave entre as partes ou mesmo entre estas e o Juiz Auditor.

3) O Juiz de Direito da Justiça Militar:

A instituição, nas Auditorias de Justiça Militar estaduais, de dois órgãos judicantes – os Conselhos de Justiça Militar e os Juízes de Direito da Justiça Militar – se fez pela EC 45/2004 porque a referida Emenda Constitucional introduziu novo critério de classificação dos crimes militares, destacando: a) os praticados contra civis dos b) praticados contra militares ou contra a Administração Militar, bem como, introduziu uma competência cível até então inédita, a revisão judicial de punições disciplinares aplicadas administrativamente contra o servidor militar estadual. Até então, pela Organização Judiciária do Espírito Santo, esta competência era atribuída à Vara da Fazenda Pública Estadual.

Em termos de competência criminal, essa modificação se fez na esteira do que aconteceu no caso dos crimes dolosos contra a vida praticados pelo servidor militar em função contra vítima civil. Em 1996 o conhecimento e o julgamento desses delitos foi retirado pela Lei 9.299/96 da alçada da Justiça Militar e passados para a do Tribunal Popular do Júri. Depois de muitos pronunciamentos incidentais de inconstitucionalidade daquela legislação pelos Tribunais de Justiça Estaduais, Militares ou não, esta disposição passou a ter “status” de norma constitucional com a EC 45/2004 (§ 4.° do art. 125), que da mesma forma dispôs com relação a todos os demais crimes militares praticados contra civis. Estes são, agora, conhecidos e julgados pelo Juiz de Direito da Justiça Militar, funcionando singularmente, isto é, sem o colegiado, como numa vara criminal comum. Portanto, a competência do Juiz de Direito da Justiça Militar, como órgão judicante, é residual, subsistindo se não restar firmada a competência do Conselho de Justiça.

Esta constatação é importante para possibilitar a operacionalização, na prática, da alteração constitucional introduzida pela EC 45/2004 com relação à tramitação de ações penais em que ocorre concurso de delitos. No que diz respeito à aplicação da pena, nos crimes militares o concurso formal e o concurso material de delitos são tratados de forma idêntica, como preceitua o art. 79 do Código Penal Militar. Ora, em se tratando de delito praticado pelo militar contra civil, em concurso com um outro praticado por este contra a Administração Militar, de um modo geral (caso, por exemplo, de lesão corporal e prevaricação, digamos pela liberação indevida da pretensa vítima – artigos 209 e 319, respectivamente, do CPM), haverá a necessidade de desmembramento da ação penal para que cada órgão julgador - vale dizer, cada juiz natural - conheça e decida daquele de sua própria competência. Estamos em que, sendo o órgão judicante original o Conselho de Justiça Militar, o desmembramento se dará com relação ao delito de competência do juízo singular, e não o contrário.

Em se procedendo a um exame das atribuições do juiz de direito da Justiça Militar não se pode deixar de fazer menção mais pormenorizada à competência cível que lhe foi cometida na nova ordem constitucional. Na forma do § 4.° do art. 125 da CF, na nova redação que lhe deu a EC 45/2004, à Auditoria Militar cabe também julgar “as ações judiciais contra atos disciplinares militares”, competente para tanto o Juiz de Direito da Justiça Militar, singularmente.

Como registrado no texto mais acima referido, de se esclarecer que a Auditoria de Justiça Militar não tem competência para conhecer de transgressões disciplinares, isto é, das infrações do servidor militar ao Regulamento Disciplinar, cuja apuração fica a cargo das Corregedorias das Corporações. O instrumento normativo citado, o Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Espírito Santo ora em vigor, foi aprovado pelo Decreto n.° 254-R/2000, em substituição ao anterior (aprovado pelo Decreto n. 1315-N, de 11 de junho de 1979 – portanto, sob a égide da ordem constitucional de 1967).

Com base nesse diploma eventuais punições lhes são aplicadas, administrativamente, pelos Comandantes de Unidades ou pelo próprio Comandante Geral da Corporação, inclusive a pena de demissão do serviço público. O que coloca em questão, diariamente, os limites da atuação do Poder Judiciário na revisão do ato administrativo, sob as balizas da separação de poderes, de um lado, e da inafastabilidade da jurisdição, de outro: é que, em face dessas penas disciplinares aplicadas administrativamente, podem ser intentadas ações judiciais visando ao seu cancelamento ou à reversão dos seus efeitos, já que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode deixar de ser levada a conhecimento do Judiciário (art. 5.°, inciso XXXV, da CF).

Na forma da disposição constitucional, essas ações se passaram a intentar, desde dezembro de 2004, perante a Auditoria de Justiça Militar, e desde a edição da Resolução n. 33/2005 do Egrégio Tribunal Pleno, as ações já em curso nas varas com competência em Fazenda Pública estadual, versando sobre punições administrativas disciplinares a servidores públicos militares estaduais, devem ser remetidas à vara especializada castrense.

Também no texto referido acima apontei vantagens a esta alteração constitucional, pois toda matéria afeta a controle da atividade militar passa a ser decidida num só lugar, por um juiz de direito especializado. A desvantagem que também apontei, a demanda de serviço assim criada, foi absorvida pela montagem de uma estrutura adequada, com a criação de rotinas eficientes e treinamento dos serventuários (na AJMES, todos militares, na forma da Lei de Organização Judiciária) para se desincumbirem do aumento na quantidade de serviço e sua grande diversificação. O Cartório da Vara da Auditoria de Justiça Militar do Espírito Santo compõe-se presentemente um setor cível e um setor criminal independentes, com servidores responsáveis pelo andamento dos feitos respectivos, sob a supervisão geral do Escrivão-Secretário, na forma da Portaria n.° 02/2005, devidamente recepcionada pela Corregedoria Geral de Justiça.

4) Uma Demanda Jurisdicional Diferenciada:

Como de resto em todas as demais, cabe ao Juiz de Direito em atuação na Vara da Auditoria de Justiça Militar a superintendência e a fiscalização dos serviços cartorários, que lhe é cometido na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e na Lei de Organização Judiciária do Espírito Santo. Para se ter idéia das necessidades específicas, oriundas da peculiaridade do funcionamento da Justiça Militar, foi necessário baixar, a pedido destes, Portaria regulamentando o fardamento dos Juízes Militares para participação nos diversos atos processuais, bem como o dos militares estaduais que compareçam em juízo como acusados ou testemunhas, já que o fardamento incompleto ou em desalinho constitui transgressão disciplinar.

Acrescendo complexidade às demais já oriundas dessas peculiaridades no seu funcionamento, o reflexo direto da ampliação de competência e consequente diversificação de lides passíveis de serem conhecidas na Auditoria de Justiça Militar estadual foi o se passar a fazer o processamento de ações cíveis e criminais, por vários ritos diferentes: 1) o rito ordinário do Código de Processo Civil, nas ações para revisão de punições disciplinares; 2) o rito do Mandado de Segurança, idem; 3) o rito do Habeas Corpus, também em matéria disciplinar; 4) o rito ordinário do CPPM, nas infrações penais militares de competência dos Conselhos de Justiça Militar e do Juízo singular; 4) o rito do processo por crime de deserção (art. 187 do CPM).

Esta diversificação, como já referido acima, determinou a princípio - e continua a desafiar - uma demanda constante de treinamento de serventuários (cuja lotação, emprego, permanência e transferência, diga-se, fica dependente da disponibilidade de efetivo das Corporações Militares estaduais) e de aperfeiçoamento de praxes e rotinas cartorárias, de resto não previstas nas recomendações ordinárias da Corregedoria de Justiça, pela apontada especificidade do serviço nesta Vara. Tal circunstância impõe ao Juiz de Direito Titular ou em exercício na Auditoria de Justiça Militar estadual uma carga constante de estudo aliada a uma dose considerável de espírito prático, de molde a facilitar procedimentos e tarefas sem nunca atropelar as convenções legais e pôr em risco os direitos das partes e jurisdicionados em geral.

(publicado na Revista Direito e Trabalho, Vitória, abril de 2007)


10 de fevereiro de 2011

Investigação e Experiência Profissional de Magistrados Acadêmicos do Espírito Santo


I – Introdução:

Neste texto pretende-se referir como a experiência profissional na área do Direito pode inspirar, condicionar e auxiliar na elaboração de trabalhos acadêmicos e até literários, no sentido estrito do termo. Sem explorar questões referentes à metodologia do trabalho científico, serão referidos exemplos de bem sucedida utilização da experiência cotidiana por parte de quatro profissionais, todos eles acadêmicos, todos tendo atuado no Espírito Santo como magistrados e todos deixando trabalhos até hoje reconhecidos e utilizados, em áreas diversas.

São eles os capixabas e juízes de direito Renato Pacheco, João Baptista Herkenhoff e Waldir Vitral, da Academia Espírito-santense de Letras, e o maranhense juiz municipal José Pereira da Graça Aranha, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Refira-se que, na organização Judiciária da época, final do Império, o juiz municipal tinha competência para conhecer de processos de inventários, órfãos, menores e preparo de processos criminais para o júri, isto é, a instrução até a pronúncia. O juiz de direito tinha competência revisora, em determinadas matérias, sobre as decisões do juiz municipal.

Os trabalhos elaborados pelos dois primeiros e sua influência na elaboração da dissertação de mestrado que em 2001 apresentei à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa foram referidos no meu texto “Dois Estudos de Sociologia Jurídica no Espírito Santo e sua Atualidade”, publicado originalmente no n.º 55, de 2001, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Pacheco e Herkenhoff, juízes de direito em atuação no interior do Espírito Santo, tiveram sua atenção despertada para as peculiaridades da comunidade sobre que atuavam: o primeiro se ocupou da diversidade cultural observada nos descendentes de imigrantes alemães em Santa Leopoldina, que constituíam significativa parcela de destinatários de sua jurisdição; o segundo preocupou-se com as diferenças sociais e econômicas entre a população interiorana destinatária de sua jurisdição.

Ambos, em seus estudos, ocuparam-se do como deve o juiz de direito posicionar-se perante essas diferenças, e qual o seu papel na atividade de integração dessas diferenças – já que, ambos colocando-se inicialmente eles próprios como juízes de direito, tinham em mente o papel do magistrado como administrador das tensões sociais.

O terceiro, o juiz municipal Graça Aranha, atuando no final do século XIX, demonstra em sua obra máxima como a observação e a intensa vivência de um fato que veio até ele em virtude de sua atuação profissional acabou por influenciar de maneira decisiva a argumentação que expôs num romance que tinha muito mais pretensões que as usualmente correntes entre os romancistas. O Canaã é um romance de tese, que preconiza um futuro alvissareiro para o país quando se chegar a conseguir uma integração das forças sociais - representadas, no texto, pelas diferentes etnias prestes a se miscigenar. Essa tese é bastante atual, porque os grupos étnicos foram substituídos, desde a refutação à obra sociológica de Gilberto Freyre pela escola paulista de Florestan Fernandes, pelas classes sociais permanentemente em atrito, pensamento este que orienta os ideólogos das políticas públicas do governo atual.

Os três autores se preocuparam de uma maneira ou de outra com o tema da integração dos grupos sociais à sociedade. Foi, também, o tema da dissertação de mestrado, cujo título foi Aplicação da Lei Penal num Ambiente Multicultural: o Caso do Estado do Espírito Santo, que defendi em 2002 e foi aprovada pela banca presidida pelo Prof. Dr. José de Oliveira Ascensão na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Então, na exposição da idéia deste texto, o exemplo de Graça Aranha será usado como condutor do tema.

II – O Canaã de Graça Aranha:

É bem conhecida a história do Canaã, em que as teses filosóficas e sociológicas do autor são expostas de permeio a um enredo romântico que tem origem num caso criminal que ele, como juiz municipal no então Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, teve oportunidade de decidir. O Acadêmico Renato Pacheco fez um relato das peças do processo respectivo - hoje, ao que consta, perdido, restando no Cartório Criminal da Comarca de Santa Leopoldina apenas o traslado – no texto “A Justiça contra Guilhermina Lubke”, publicado no n.º 28/30, de 1967/1969, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Guilhermina Lubke (a Maria Perutz do romance) dá à luz um filho que aparece morto.

Na ação penal, o Superior Tribunal da Relação do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, acabou por concluir não haver provas de que a criança tenha nascido com vida, o que determinou a absolvição, ao final, da ré, por falta de um dos elementos do delito de infanticídio (confirmando o veredicto do júri da Comarca de Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, de 10 de dezembro de 1890 - veredicto este, aliás, posto em discussão pelo Acadêmico Augusto Lins no seu Graça Aranha e o Canaã, onde sustenta ter ocorrido na ata de julgamento “erro judicial, maliciosamente aproveitado, num jogo para o menor esforço” (p. 144).

No romance, Maria dá à luz uma criança, trabalhando solitariamente num cafezal (não retornou à casa dos patrões por medo de ser maltratada, como mãe solteira que era) e cai, esvaindo-se em sangue. Alguns porcos que estavam por perto correm a lambê-los e acabam por morder o bebê, que falece. A filha dos patrões chega neste momento e vê a cena, correndo a dizer em casa que Maria matara a criança e a dera de comer aos porcos.

Presa dois dias depois, Maria é pronunciada pelo juiz Paulo Maciel, alter ego do autor, e já meio louca acaba fugindo da prisão pelas mãos de Milkau - aquele que, no romance, acredita na miscigenação das raças como futuro da civilização, em oposição a seu amigo Lentz, que acredita firmemente na superioridade racial alemã (numa época em que às nacionalidades eram atribuídas características psicológicas pelos autores europeus). Essa fuga se dá então em busca de um lugar em que os homens possam viver em harmonia, o “canaã” do título, “onde as feras não fossem homens”.

É o Canaã um romance de idéias, e por isto acusado até mesmo de má estrutura ficcional. A linguagem é bastante adjetivada, e reúne elementos das estéticas realista e impressionista, esta última num quase simbolismo. Mas também é ponto pacífico que justamente esta síntese de estéticas e a oposição de idéias antagônicas das personagens, forçando, ao mesmo tempo, a um debate mais profundo das condições psicológicas e sociais do Brasil, acabaria por ter sua parcela de influência na tomada de consciência dos que, vinte anos depois, inaugurariam o Modernismo entre nós.

III – A “aridez intelectual” do jurista

Interessante é que é opinião difundida a de que a prática do Direito, por causa de seu raciocínio de cunho eminentemente lógico, acaba por tornar árida a mente do seu cultor, de tal maneira que não favorece a elaboração literária, no sentido estrito. Some-se a isto o fato de que, para Renan, o público tende a ser mais receptivo ao trabalhador intelectual de gênero único, aquele que, com disciplina e rigor, se fixa em apenas uma área do saber. A este respeito vale referir discurso proferido por Barbosa Lima Sobrinho na sede da Academia Brasileira de Letras, em homenagem ao centenário de Inglês de Souza, precursor do Realismo no Brasil, em que exclama: “se pudéssemos ao menos libertar a memória do romancista Inglês de Souza dos prejuízos, ou da influência da autoria de livros de direito”... [1]

Refira-se aqui, de passagem, como refutação a este preconceito, e acrescentando ao exemplo de Graça Aranha, o exemplo de um outro romancista, também profissional do Direito e que usou sua experiência no foro, como promotor de justiça, para buscar o tema de um de seus romances. Trata-se do romancista cabo-verdiano Germano Almeida, mais conhecido no Brasil pelo livro O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, adaptado para o cinema, em que o papel título foi vivido por Nélson Xavier. No romance Os dois Irmãos, de 1995, o autor resgata um caso criminal em que atuou. Palavras suas, no preâmbulo:

“A história que serve de suporte a esta estória aconteceu lá pelos idos de 1976, algures na ilha de Santiago. Como agente do Ministério Público fui responsável pela acusação de ‘André’ pelo crime de fratricídio. Só muitos anos depois percebi que ‘André’ nunca mais me tinha deixado em paz. Devo-lhe por isso este livro no qual a realidade se confunde com a ficção”
O enredo do romance é totalmente do domínio da Sociologia Jurídica: André, natural da ilha de Santiago, deixou esposa e outros familiares e migrou para Portugal, indo fixar-se em Lisboa. Passando lá algum tempo como imigrante, retornou a sua terra e percebeu uma certa reserva de todos no trato com a sua pessoa. Até que lhe foi revelado que seu irmão tinha mantido relações sexuais com sua esposa, e todos na comunidade, incluídos aí os seus pais, esperavam uma reação em desagravo à afronta que sofrera. O livro narra o julgamento de André pelo ato que cometeu, muitos dias depois de sua chegada, ao não resistir mais à pressão da comunidade sobre sua pessoa.

IV – Investigações acadêmicas

Referido mais este exemplo de cunho literário, e do arquipélago de Cabo Verde de volta ao Espírito Santo, cabe aprofundar agora alguns exemplos de como a experiência no foro pode inspirar da mesma forma, e até mesmo com muito mais freqüência, a concepção e elaboração de trabalhos de caráter acadêmico, no exame dos trabalhos citados na Introdução.

Ao ir judicar na Comarca de Santa Leopoldina, o Acadêmicos Renato Pacheco já tinha sua formação no mestrado da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Seu primeiro trabalho publicado na revista Sociologia, daquela instituição, foi “Alguns aspectos legais do casamento no Brasil”, em 1954, e portanto pode-se dizer que desde logo seu interesse acadêmico foi atraído pelas questões afetas à área da Sociologia Jurídica.

Trabalhando no interior do Estado como juiz de direito, lastreado numa formação em ciências sociais, tendo consciência do papel que desempenhava, por sua função, na comunidade em que atuava, naturalmente observador, Renato Pacheco começou a recolher material para elaborar o texto que posteriormente publicou na mesma revista Sociologia, no número XXVI, intitulado “Assimilação de alemães no Espírito Santo – Brasil”. Já na introdução dá conta de que o projeto, idealizado anos antes, era possível de ser realizado àquela altura em virtude da “oportunidade que nossa remoção, como magistrado, nos propiciou de reiniciar os trabalhos de campo”. Dá notícia, também, das dificuldades que enfrentou, dizendo que

“mister se faz consignar uma observação metodológica quanto as dificuldades de o pesquisador estar investido de função pública de status elevado e não obstante isto olhada com desconfiança pelos grupos em vias de assimilação, situação que se não modificou muito, desde o relato famoso de Graça Aranha”.
No entanto cabe referir um estudo preliminar que Renato Pacheco fez, em preparação à elaboração do estudo acima. É o texto intitulado “Atitudes perante a lei, em uma subcultura brasileira”, publicado no n.º 21, de 1961, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nesse texto o autor alia às suas qualidades de observador a sua preocupação de conhecimento da comunidade na qual atuava, como uma das formas de conseguir uma maior integração do subgrupo (formado pelos descendentes de imigrantes teutos) à estrutura externa – isto é, a comunidade nacional.

De suas observações no dia-a-dia no foro levantou alguns problemas que apareciam - entre outros, é certo - como obstáculo ao processo de assimilação da comunidade observada: a) o elevado índice de alcoolismo entre os colonos, inclusive do sexo feminino (o que não era, no entanto, característica isolada do grupo, pelo contrário); b) o descompasso entre a lei sucessória brasileira e o costume do morgadio; c) a problemática dos delitos sexuais, porque o conceito de honestidade da mulher era diferente do luso-brasileiro; d) o receio da autoridade, principalmente do “soldado de polícia” (o policial militar).

Os trabalhos citados de Renato Pacheco podem ser classificados como pesquisa descritiva. Já o outro trabalho acadêmico acima referido, a dissertação de mestrado que em 1976 o Acadêmico João Batista Herkenhoff apresentou à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, parte de algumas hipóteses formuladas por ele, servindo-se também da observação no seu dia-a-dia no foro, e utiliza-se de questionários aplicados a juízes e jurisdicionados, na capital e no interior, para comprovar sua validade.

Como já referi no trabalho de minha autoria que citei mais acima, Herkenhoff “partiu da idéia central da convivência, no interior do Brasil, do direito formal, emanado da produção legislativa, com um direito não formal, ‘marcado por peculiaridades locais, consagrado pelo costume’ e que tem o respaldo da ‘autoridade local’”. A partir daí, procura, de maneira empírica, estudar o papel do juiz de direito na mediação entre as duas ordens normativas, partindo do pressuposto de ser este um agente capaz de operar, com sua atuação, a redução dos desencontros daí resultantes.

Algumas das hipóteses inicialmente formuladas por ele foram confirmadas, outras só em partes. As conclusões a que chegou, em síntese, foram: a) no interior as pessoas tendem a distinguir mais entre a pessoa do juiz de direito e a Justiça, sendo que nessas comunidades o juiz de direito é liderança que só perde em prestígio para o prefeito municipal; b) a maioria dos juízes na época tinha uma posição de conservadorismo moderado, e noção da necessidade de se adaptar o direito nacional e os valores em que se baseia a vida interiorana; c) em alguns temas, as comunidades interioranas encontram-se à frente dos juízes em termos de reforma social.

Esta última conclusão demonstra que Herkenhoff estava preocupado com a inserção de grupos sociais e sua interação na sociedade, e sob este aspecto a atividade daquele que dela se desincumbe – isto é, o juiz de direito – faz dele o mediador dos conflitos inevitáveis nesta convivência entre classes sociais.

Ambos os autores utilizaram essas suas conclusões, originadas de um trabalho inicial baseado em sua vivência diária, na elaboração de trabalhos mais amplos decorrentes da natural evolução de seu pensamento. Pacheco pregou posteriormente em seu texto “Juiz e Mudança Social”, publicado no n.º 210, de abr/jun 1965, da Revista Forense, a atuação do juiz de direito como verdadeiro pensador social, ou, como chamou, de “sociólogo em ação”. Sempre se ocupando, nesta área, da Sociologia e da Sociologia Jurídica, seu último livro publicado foi Introdução ao Estudo da Sociologia Geral e Jurídica: Sociedade e Direito, publicado postumamente, em 2006, pela FDV e Editora Fundação Boiteux..

Já Herkenhoff aperfeiçoou e utilizou posteriormente a idéia que o norteou (e confirmou em seu trabalho acadêmico) em seu posterior Como aplicar o Direito, publicado pela Editora Forense em 1979, em que propõe a atividade de aplicação da lei sob três perspectivas: a axiológica (levando em conta os valores éticos de que o julgador deve impregnar a decisão); a fenomenológica (levando o julgador a tentar compreender o homem posto a julgamento e o seu mundo) e a sociológico-política (a investigação dos valores da comunidade em que atua, desempenhando o julgador uma função progressista e renovadora). É idéia recorrente em muitos dos diversos livros que escreveu a partir de então.

V – Deontologia jurídca e o dia-a-dia do Foro

Finalmente, de se fazer menção a uma obra que, embora não se tenha originado diretamente de trabalhos de campo nem da observação empírica da realidade fática do foro, origina-se de uma atividade de reflexão e recolha de material de um juiz de direito sobre o dever-ser da atividade forense.

Trata-se de Deontologia do Magistrado, do Promotor de Justiça e do Advogado, publicado pela Editora Forense em 1992, em que o Acadêmico Waldir Vitral expõe o conjunto de deveres profissionais daquelas classes de trabalhadores do Direito através de decálogos, mandamentos, preces, máximas e pensamentos, de sua recolha e seleção.

Mas é de registrar (o que tem total relevância e nos traz de volta ao tema tratado neste texto), que o Acadêmico Waldir Vitral, também ele magistrado aposentado, tem em uma das facetas de sua obra literária a recolha de material referente ao dia-a-dia da sua atividade no Foro. Entre suas obras publicadas se conta, também, um volume de pitoresco judiciário, em que dá o resultado da recolha de casos interessantes que viveu nas suas carreiras de promotor de justiça e juiz de direito, atuando em Comarcas do norte do Espírito Santo, ou de que tomou conhecimento ao longo de seus vários anos de atividade jurídica: o livro Pitorescos, publicado em 2000.

Neste trabalho, Vitral dá testemunho de seu poder de observação e revela sua inclinação de colecionador e sistematizador, numa obra que, em não sendo lida como simples repositório de fatos engraçados, tem também importância como crônica bem humorada do cotidiano da atividade do profissional do Direito no interior do Espírito Santo de então - época da questão de limites geográficos com Minas Gerais na região do Contestado, quando as Comarcas do interior chegavam mesmo a ficar muitos dias de viagem distantes da Capital.

V – Conclusão: atividade acadêmica e atividade profissional

Não é coincidência que todos os autores capixabas referidos sejam, ou tenham sido, membros da Academia Espírito-santense de Letras. O próprio Graça Aranha freqüentou a Academia durante uma parte de sua vida – e, como se sabe, tendo renunciado à cadeira n.º 38 da Academia Brasileira de Letras por discordâncias pessoais com a maioria dos integrantes do silogeu, quando do lançamento das bases da estética modernista no panorama da arte brasileira de inícios do século XX.

Sem falar em maior ou menor grau de sensibilidade - o que é de cada um e de maneira indiscutível condiciona a criação literária, esteticamente falando - o envolvimento maior ou menor do profissional com sua atividade, isto em todas as áreas de atuação, acaba por condicionar (naqueles que têm talento investigativo), os seus esforços nesse domínio de atuação, que se pode dizer paralela à sua atividade principal.

Aliás os exemplos referidos ao longo do texto ocupam lugar de destaque na produção intelectual de seus autores, e adornam também com destaque os registros da produção bibliográfica da Academia Espírito-santense de Letras.

Notas:

[1] Estudei o Acadêmico Inglês de Souza, presidente da Província do Espírito Santo em 1882, no texto “O Acadêmico Inglês de Souza e a Presidência da Província do Espírito Santo”, publicado no n.º de 2007 da Revista da Academia Espírito-santense de Letras.


(publicado originalmente no n.º de 2008 da Revista da Academia Espírito-santense de Letras)