23 de junho de 2010

O espírito francês


Um dos pronunciamentos do entertainer Diego Armando Maradona nesta Copa do Mundo mereceu “repreensão” de nossos “formadores de opinião” em excursão pela África do Sul. Em entrevista, o showman portenho criticou a postura dos franceses, dizendo que todos sabem que eles [em geral] se consideram melhores que toda a gente. Relevemos Dom Diego: é o senso comum, e não é o propósito aqui discuti-lo.

Mas que sem dúvida a participação da equipe francesa no torneio de futebol que se desenrola no continente africano foi lamentável sob todos os aspectos, isso foi. Pífia em termos de competição, grotesca em termos de organização, elucidativa no demonstrar o pior (com licença dos "formadores...") do espírito francês.

Em abono ao afirmado acima (e já que não sou, eu mesmo, um “formador de opinião”), transcrevo uma outra - esta sim abalizada, porque devidamente publicada por profissional - o colunista Ferreira Fernandes, no Diário de Notícias de Lisboa de 21 de junho de 2010. Intitula-se Revolta no Vestiário:

“A França é conhecida pelas suas revoluções (a de 1789, a Comuna de Paris...) – violência com ideais. Mas o que se passa com a França do futebol é de outra família de tumultos: as jacqueries. Camponeses com chuços e sem ideia alguma senão o respeito perdido pelos amos. Acabaram sempre mal para os camponeses. Remontam a tempos medievais, espalharam–se pelo continente e nós tivemos uma bem perto, a meados do século XIX, a Patuleia, minhotos de pata ao léu.

A que acontece agora, francesa e moderna, calça chuteiras da patrocinadora oficial Nike. As jacqueries medievais chamaram-se assim por causa de um nome, “Jacques Bonhomme”, que não era uma pessoa certa mas nome colectivo, como aquele “Joões” que Garrincha emprestava a qualquer defesa que o marcava. Há dias, Anelka fez de “Jacques” insultando seu treinador Domenech, barão destituído de tudo. Ontem, Ribéry também fez de “Jacques”, invadindo o estúdio da TF-1 onde se entrevistava Domenech. Foi lá, com sua cara de servo da gleba, dizer que os futebolistas franceses estão zangados, e só. Ontem, ainda, tal como os camponeses da Picardia deitavam fogo às medas que eles próprios tinham ceifado, os futebolistas recusaram-se a treinar... As jacqueries antigas, explosões sem saída, tinham uma desculpa: a fome. O suicídio de futebolistas milionários é simplesmente tolo”

O “barão destituído de tudo” de Ferreira Fernandes - Domenech, o treinador francês - deu o exemplo final de antiesportividade e falta de educação ao se recusar a cumprimentar Carlos Alberto Parreira, técnico da África do Sul, que o vencera limpamente em campo, sob um pretexto qualquer.

Infelizmente as formidáveis realizações francesas vão aos poucos sendo apagadas da memória do vulgo por esse espírito “servo da gleba”, imortalizado e exportado aos quatro cantos - infelizmente, também, pela própria França. Ora, sendo “muderno” (desde ao menos princípios do século XX) considerar que o passado é coisa de museu, pode ser que essa renovada mentalidade camponesa medieval seja só o que restará, dentro em pouco, da outrora influente civilização das luzes. Ao menos no Brasil, o que seria terrível para nós.

Há quem diga que Paris é cada vez mais, em termos de influência acadêmico-literária, um simples destino turístico. O “respeito perdido pelos amos” não significa (a contrário do que se apregoa por aí) liberdade, se este amo de quem vimos nos desapegando for a Civilização, outrora um culto na França. Ainda que sob a roupagem das regras de um jogo, ou do esforço coletivo incondicional por um objetivo predeterminado.

Como as coisas do futebol são assim mesmo, que nos reste "o resto" - que, no caso de la France immortelle, é  simplesmente esplendoroso.