21 de maio de 2010

FORMAÇÃO CONTINUADA DE JUÍZES E GESTÃO CARTORÁRIA

Vista de Brasilia/DF, sede da Escola Nacional da Magstratura


Interessante a rápida evolução que no Brasil teve, de algumas décadas para cá, a idéia de treinamento contínuo para magistrados. O escopo das Escolas da Magistratura – hoje com sede na Constituição Federal, no inciso IV do art. 93, que se refere a uma escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados.

Como gênese deste movimento hoje firmemente constitucionalizado, na década de 60 do século passado o festejado processualista Egas Moniz de Aragão fez uma correlação entre o aperfeiçoamento da Magistratura e a melhoria da prestação jurisdicional no estudo Formação e Aperfeiçoamento de Juízes, publicado na extinta Revista de Direito Processual Civil, do Prof. Alfredo Buzaid.

Atento ao tema, aqui no Espírito Santo propunha o juiz de direito Renato José Costa Pacheco, em discurso proferido por ocasião da instalação e posse solene dos órgãos de administração da Associação dos Magistrados do Espírito Santo, em 1966, a “criação de cursos de aperfeiçoamento de magistrados, num sadio movimento de retorno à escola, para aprimoramento profissional, em época de tão intensa mudança em que os menos apercebidos perecem; assim como [...] existência de cursos de especialização para futuros juízes”.

A proposição pioneira de Renato Pacheco foi rejeitada pela comunidade judiciária por duas vezes, no I Encontro Nacional de Magistrados, realizado em Vitória, em 1973, e no II Encontro, realizado no ano seguinte, em Petrópolis, sob o argumento famoso de que “juiz não precisava de escola.”

No entanto, após “Diagnóstico” do Poder Judiciário realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em 1975, e que apontou os males que atingiam, à época, o organismo judicial, suas causas e soluções, a Emenda n. 07 à Constituição Federal de 1967, promulgada dez anos depois do texto da Carta, já falava em “freqüência e aprovação em curso ministrado em escola de aperfeiçoamento de magistrados” como possível condição para promoção de juízes nos degraus da carreira.

Com a edição da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em 1979, e a menção, nos seus art. 78 e 87, respectivamente, a “habilitação à carreira por meio de curso oficial para preparação à Magistratura” e a “promoção na carreira por meio de freqüência e aprovação em curso ministrado por escola oficial de aproveitamento de magistrados”, o Estado do Rio Grande do Sul acabou por sair na frente na criação e instalação de sua Escola.

Já a Escola da Magistratura do Espírito Santo foi criada em 1985, sendo Presidente do Tribunal de Justiça o desembargador Sebastião Teixeira Sobreira. Foi finalmente instalada em 1986, mediante convênio celebrado pelo então presidente da Corte, desembargador Hélio Gualberto Vasconcellos, e o presidente da Associação dos Magistrados do Espírito Santo, desembargador Renato de Mattos.

Cumprindo a determinação inserida no texto constitucional pela EC 45/2004, hoje a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM - é uma realidade. Instalada em abril de 2007 e vinculada ao Superior Tribunal de Justiça, é presidida por um ministro daquela Corte, e de seu Conselho faz parte o Diretor da Escola Nacional da Magistratura, da Associação dos Magistrados Brasileiros.

Tudo isso a propósito de recente Curso de Capacitação em Poder Judiciário que pude frequentar no corrente mês de maio, oferecido pela Escola Nacional da Magistratura. Fomos por volta de trinta juízes de direito, representantes dos diversos segmentos da magistratura e oriundos dos diversos cantos do País.

Em uma semana na sede da ENM, em Brasília, debaixo de carga horária rígida, foram passadas noções aprofundadas de Macroeconomia, de Orçamento, de gestão de serventias judiciais, de Ética na atividade judicante, de Direito Privado e novas tecnologias. Mas houve também a possibilidade de criar novos relacionamentos, com a consequente troca de experiências e o conhecimento de realidades distintas em que se presta o serviço judicante por esse país a fora. E a infalível visita à sede do Supremo Tribunal Federal. A confraternização na melhor churrascaria da cidade numa daquelas noites nem era para ser comentada aqui...

Já há alguns anos o Curso de Capacitação em Poder Judiciário vem sendo oferecido pela ENM, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. A propósito, vindo ao encontro da orientação do Conselho Nacional de Justiça no sentido da necessidade de treinamento de juízes de direito em gestão de suas unidades judiciárias. Hoje, pode-se dizer, talvez o foco principal dessa formação continuada dos quadros da magistratura.

A muitos profissionais essa orientação pode parecer descabida, sob o argumento de que cada vez mais o juiz de direito se afasta de sua função judicante. A esses pondere-se que a gestão de pessoas e de processos, desejável no mínimo para que o fluxo procedimental deságue regularmente no gabinete do julgador, é atribuição que nem de longe pode o juiz de direito entregar a terceiros. Pela componente de ingerência externa que uma tal delegação oporia à autonomia na administração e fiscalização cartorária a ele concedida pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

As boas práticas de gestão no Poder Judiciário estão cada vez mais visíveis. De sua necessidade, não há mais dúvida nenhuma a esta altura. Nada obsta a que a formação continuada determinada na Constitutição Federal contemple também essa vertente da atividade judiciária. Tomada, aqui, como atividade-meio que possibilite chegar de maneira satisfatória à atividade-fim, a decisão judicial.

19 de maio de 2010

UMA BIOGRAFIA DE CLÓVIS


Lançada agora em 2010 uma biografia do jurista cearense Clóvis Bevilaqua, o autor do Código Civil de 1916, que vigeu no Brasil por mais de oitenta anos.

Obra organizada por Cássio Schubsky, ricamente ilustrada com fotografias e documentos, traça a trajetória da vida pública de Beviláqua e nos dá a conhecer fatos sobre sua vida particular, a companheira, a família.

Estão registradas as atividades do civilista, do criminologista, do filósofo, do constitucionalista, do historiador, do literato. Grandes personalidades do Direito atual prestam depoimentos sobre o biografado, a exemplo dos ministros Eros Grau e César Asfor Rocha, além de outros.

É importante a iniciativa, ainda mais porque sai com o selo de uma série denominada “Grandes Juristas”, da editora Lettera.doc, de São Paulo. Esperemos que a série continue: como diz o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, na Apresentação da obra

“a relação do direito com seus grandes nomes [permito-me acrescentar, no Brasil] é um tanto singular. Em vida, há intensos debates sobre sua produção acadêmica ou técnico-jurídica, quando não se lhes prestam homenagens sob a forma de citações elogiosas ou se lhes outorgam comendas ou títulos universitários. Pouco ou nada, todavia, é registrado sobre a vida desses homens e mulheres que, em larga medida, dedicaram-se à causa do Direito e da Justiça com a força de um sacerdócio. Com seu falecimento, só os textos por eles escritos testemunham sua passagem entre nós, sem que as circunstâncias nas quais se forjaram seus caracteres e suas contribuições teóricas venham a lume”.

De fato. Por isso a iniciativa é louvável, e louvável se inicie uma série a isso voltada contemplando o vulto de Clóvis. Para nós, capixabas, de simpática memória também por sua amizade de vida toda com Afonso Cláudio (talvez o nosso jurista maior).

Colega de quarto de Afonso Cláudio durante os anos de formação na Faculdade de Direito do Recife, Clóvis Beviláqua fez o prólogo à História da Literatura Espirito-santense, publicado em 1912. Ao “insigne jurisconsuto brasileiro Dr. Clóvis Beviláqua” dedicou Afonso Cláudio o primeiro volume do seu Estudos de Direito Romano, de 1916. As citações mútuas se multiplicaram ao longo da vida porque homens de gênio se reconhecem, o que inclusive está acima da circunstância de terem sido colegas de curso.

Clóvis Beviláqua: um senhor brasileiro merece leitura atenta. Os bons exemplos profissionais e de vida deveriam servir de norte a todos, em alguma medida.

6 de maio de 2010

A VITÓRIA SIM, VITÓRIA NÃO

Lendo o excelente volume Crônicas do Cotidiano: A vida cultural de Pernambuco nas crônicas de Gilberto Freyre, recém-editado pela Fundação que leva o nome do Mestre de Apipucos, vejo lá o texto O Recife sim, Recife não! em que o mestre reclama da inovação de grafar o nome de sua cidade sem o artigo definido, atribuindo essa prática a um “carioquismo” que invadia a imprensa local contemporânea. O fato é que, diz ele, o recifense autêntico referia-se a sua cidade como “o Recife” (ao menos na década de 80, data do texto publicado no jornal Diario de Pernambuco).

O protesto de mestre Gilberto Freyre lembrou-me o nosso Eurípides Queiroz do Valle, desembargador do Tribunal de Justiça, membro da nossa Academia de Letras e do nosso Instituto Histórico. O autor, versado, cioso e saudoso das boas tradições capixabas, publicou crônica (posteriormente colecionada no seu Micrólogos, de 1968) datada de Abril de 1951, intitulada Cidade de Vitória em que chama a atenção para o fato de que nossa cidade sempre fora chamada, inclusive em documentos, a Vitória, e não simplesmente Vitória, o que tachou de “deturpação recente”.

Por interessante, não me furto a transcrever fielmente as palavras do ilustre cronista:

“Passará no próximo dia 8 de setembro o quarto centenário de batismo da Cidade de Vitória. O Governo e as instituições culturais do Estado se aprestam para festejá-lo condignamente. Disse centenário de batismo e disse bem. Porque o que se vai comemorar não é o nascimento, mas o batismo da cidade. Vitória já existia em 8 de Setembro de 1551. Com outro nome, é certo, mas já existia. Trazia um apelido de casa. Era denominada VILA NOVA para que não se confundisse com a Vovó, com a VILA VELHA, já existente no continente. Com a vitória definitiva dos portugueses sobre os terríveis selvagens que tanto trabalho deram aos primeiros colonizadores, a povoação passou a chamar-se Vila da Vitória. Era uma homenagem. Homenagem com que os velhos portugueses procuravam perpetuar a sua coragem e destemor. A denominação pegou. Atravessou quatro séculos e aí está. Mas está, meus amigos, um tanto deturpada. Que me perdoem os Drs. Mário Freire, Heráclito Pereira, Ceciliano Almeida, Eujenio de Assis e outros Mestres. Se a denominação foi dada para lembrar uma vitória, a cidade devia ser então CIDADE DA VITÓRIA e não Cidade de Vitória. Essa deturpação, porém, deve ser recente. Porque desde a sua elevação à Vila que ela vem sendo VILA DA VITÓRIA. Assim a denominaram em seus trabalhos os historiadores Misael Pena e Braz Rubim entre os nossos e Brito Freire e Porto Seguro, entre os estranhos. Nos documentos oficiais também. A própria carta de lei de 18 de Março de 1832 em que o Sr. D. Pedro ‘pela graça de Deus e unânime aclamação dos Póvos’ houve por bem elevar a Vila à Cidade, oficializou a expressão CIDADE DA VITÓRIA. Trata-se, portanto, de denominação consagrada pelos historiadores, pelo uso, pelos documentos oficiais e pela própria lei.

Estamos no ano em que vamos festejar o quarto centenário desse batismo. E como seria interessante volver agora à tradição e fazer com que os atos oficiais dos Poderes Públicos do Estado e a nossa própria correspondência particular começasse, desde já, a ser datada da CIDADE DA VITÓRIA! Aí, fica, meus amigos, a sugestão.”

Sugestão esta, ao que se vê diariamente, não acatada. Arcaísmo? Tema para discussões bizantinas? Cada um que julgue. Mas discuta, como instigaram ambos os mestres em seu tempo.

2 de maio de 2010

Sabalogos

Hotel Senac, 2008: Sérgio Bichara, Pedro J. Nunes, Ivan Borgo, Getulio Neves, Michel Minassa Jr., Luiz Guilherme Santos Neves, Paulo Stuck Moraes, Gabriel Bittencourt, Reinaldo Santos Neves. Quase todos sabalógicos.
Desde 1989. Nasceu de um encontro casual entre João Bonino Moreira e Sérgio Bichara. Ambos muito “sistemáticos” mas que, surpreendentemente, não se estranharam naquele dia de maio em Vitória. Estavam na Livraria Logos da Praia do Suá, e o assunto entre os dois, não de forma surpreendente (porque estavam numa livraria), foi livros.

Constatadas por ambos as similaridades de gostos aquele foi, então, um embrião. A eles (provavelmente porque só haveria por ali uma mesa) foram-se juntando outros: Pedro J. Nunes, Carlos Wilson Lugon, Francisco Grijó e José Neves. Depois vieram Renato Pacheco, Luis Guilherme e Reinaldo Santos Neves, Ivan e Ivantir Borgo, Henrique Herkenhoff, Miguel Depes Tallon, Vitor Biasutti, Carlos Teixeira Campos Jr., Fernando Achiamé, Michel Minassa Jr., Léa Brígida de Alvarenga Rosa, Getulio Neves, Álvaro José Silva.

Há quem diga tratar-se de uma sucessão, no tempo, das reuniões que se realizavam na Livraria Âncora, de Nestor Cineli, ali na velha loja aos pés da Cidade Alta, nos idos dos anos 60. Reuniões de intelectuais de Vitória e visitantes do interior e exterior do Estado, todos com interesses parecidos. Que seja. Mas o nome da vintenária tertúlia surgiu foi da ideia da junção do termo “Sabadoyle” (criado por Raul Bopp para as reuniões que se faziam nos sábados à tarde na casa de Plínio Doyle, no Rio de Janeiro), com o nome do lugar que sedia os encontros. Foi um achado de Renato Pacheco.

Falava-se e fala-se de tudo e de literatura também. Saía-se, geralmente uma vez por mês, em excursão gastronômica aos restaurantes da cidade, de que se lavrava a ata respectiva, ad perpetuam rei memoriam. Os registros encontram-se sob a guarda de Sérgio Bechara. Uns são frequentadores assíduos, outros bissextos. Há os que não frequentam mais, ou porque se mudaram de Vitória ou porque nos deixaram para sempre. Caso de João Bonino, um dos fundadores. Ou um outro desses faltantes, que entre tantos legados que deixou, dá nome ao recanto da livraria Logos, do Silvio Foli, onde acontecem os encontros todos os sábados pela manhã: Recanto Renato Pacheco.

Não se trata de um recanto para recitar poesia. Não se fala só em literatura, nem somente em assuntos de trabalho – uma grande parte é de “cultores do Direito”, juízes e advogados. Mas há também jornalistas, professores, engenheiros, servidores públicos. A maioria escritores. Todos eles leitores. Fala-se de política, futebol, religião, contam-se anedotas – o campeão é Pedro Nunes, ungido por Renato Pacheco pelas habilidades de sonoplasta de que lança mão para dramatizar os casos (Renato não almoçava no sábado sem antes ouvir um chiste do autor de Vilarejo e de Aninhanha). Fala-se ali até em mulheres, mas como objeto literário.

Aliás, foi daí que surgiu a ideia da publicação de um livro de contos dos tertulianos, o Mulheres: diversa caligrafia, organizado pelo Pedro Nunes e que, de 1995, vem a ser a única iniciativa do grupo no campo literário nesses anos todos. Uma pena, porque a produção é de alto nível: Adilson Vilaça, Carinhos de Solidão Lilás; Francisco Grijó, Todos os poemas para Thereza; Luis Guilherme Santos Neves, Alegres noites na casa de Dom Barão; Pedro J. Nunes, Mariposa noturna em veranico de Maio; Reinaldo Santos Neves, Juliana e Dom Jorge ou Com o perdão da má palavra; Renato Pacheco, Dedé Caetano e Sebastião Lyrio, Anjos, morcegos etc. Com direito a Prelúdio de Roberto Mazzini.

Diz o Pedro, idealizador e organizador, em nota inicial ao livro, que todos os pormenores foram discutidos “nas barbas dos demais parceiros de sábado e café, Bonino, Zé Neves, Sérgio e Lugon, que não escrevem, mas leem, e ficaram cobrando o livro o tempo inteiro”. E que os autores/sabalógicos, “parceiros de ofício e apreciadores do tema” versado no título só fizeram deitar “na brancura do papel um dos muitos assuntos que lhes torna as manhãs de sábado quase infinitas”. Aí está, registrado por autoridade reconhecida em Sabalogos, a variedade dos temas de discussão. Quod erat demonstrandum.

Esse esforço de demonstração porque pode ser que, em mais um aniversário da tertúlia, surja quem queira publicar outra reportagem que a trate como um dos grupos de leitores, para leitura, que existem na cidade. Nada contra, nem os grupos nem o fato de mais uma reportagem, se sair. Mas é bom registrar que ali não há regras. Não há pauta, não há obrigatoriedade de desenvolver atividades, de declamar, de comentar, de estudar assuntos predeterminados. Há a obrigação, sim, de parlamentar, de conviver. Não é muito em termos de obrigação, mas convive-se em alto nível.

Como todo grupo lendário que se preze, existem já mistérios e tradições que o cercam. Ali no Recanto Renato Pacheco vê-se na parede uma caricatura do pessoal contemporâneo reunido, sentado à mesa. Alguns dos retratados já se foram, e o misterioso é que o ir-se tem atendido, por enquanto, à ordem em que foram desenhados pelo artista, das extremidades para o centro da mesa. Por conta disso, há propostas veementes pelos “da vez” de mandar refazer o quadro, não apoiadas por quem está colocado mais ao centro (e, por via das dúvidas, não aceita mudar de assento).

Enquanto isso, fala-se do tempo que passa e da amizade que fica.