30 de abril de 2010

O SUPREMO TRIBUNAL E A HISTÓRIA DESTE PAÍS

No desenrolar da marcha cotidiana do Brasil na busca pela democracia plena era inevitável que, quando da chegada ao poder da facção ideológica vencida sistematicamente pelo voto e pelas armas ao longo do século XX, a democracia que construímos nos últimos vinte e cinco anos se defrontasse com seu passado, com a história de sua construção.

A lei 6683/79, cujo § 1.º do art. 1.º era tachado de inconstitucional pela Ordem dos Advogados do Brasil na ADPF 153, foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal, neste 29 de abril, conforme à ordem constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988.

Existem inegáveis dúvidas, em termos de técnica jurídica, quanto à postulação. Seja o discutível interesse de agir, seja a discutível possibilidade jurídica do pedido. De fato, os delitos de sequestro a mão armada, assalto (em linguagem leiga), homicídio, já se encontram fulminados pela prescrição da pretensão punitiva estatal, ao menos trinta anos depois das condutas tachadas de criminosas. Os efeitos da lei que incrimina a tortura, n.º 9.455/97, não podem retroagir para alcançar o período 1961/1979. Tratados internacionais não têm validade automática entre nós. Tipos penais assim definidos devem ser positivados na ordem jurídica nacional para atendimento do princípio da tipicidade. Da mesma forma não podem retroagir a datas pretéritas. Por conta disso os ministros Marco Aurélio e Cesar Peluso entenderam faltar sentido prático à postulação. Por outro lado, um ato jurídico perfeito sob ordem constitucional anterior não poderia ser revisto à luz de uma nova ordem constitucional, ainda que sob a invocação de princípios ditos onipresentes.

Mas a fundamentação maior do pedido não era jurídico, sim político-ideológico - sem qualquer conotação negativa. Era antes uma tentativa de acerto de contas com o passado. Pleiteava-se a revisão do ato jurídico perfeito que concedeu anistia a criminosos de ambos os lados da disputa contemporânea pelo poder. Pleiteava-se a revogação da anistia, uma das maiores expressões de soberania do Estado, comparando o documento legislativo que a corporificou com as instituições de uma nova ordem nacional, numa nova quadra da História nacional. Muito distinta daquela em que foi editado, pela própria necessidade do desenrolar da história dos povos e das nações.

Obviamente a decisão será vendida à população como "Supremo é contra punição de torturadores", ou coisa parecida. Porque a notícia é lançada à população na forma das demandas contemporâneas e apreensíveis por esta, e assim tanto ajuda a moldar essas demandas na população como tem sua cobertura pautada por elas. O quanto ou como ocorre essa interação não é o que importa aqui.

Importa é que o julgamento da ADPF 153 declara expressamente – e nesse sentido essa decisão tem uma inegável matiz declaratória, inclusive no sentido jurídico da expressão – que o Brasil não tem oito anos de História. Ainda que não se possa deixar de reconhecer o protagonismo cada vez maior do povo na História nesses últimos oito anos. O que é mérito inegável da tendência ideológica atualmente no poder e da mesma forma passa a ser demanda irreversível a partir dele. Mas esta é apenas uma quadra da história da relação Estado/povo neste país; a análise histórica se faz de largos períodos de tempo, para assim lhe captar tendências e orientações cientificamente relevantes.

O Supremo Tribunal Federal trouxe a conhecimento da população que as novas demandas, que esse inédito protagonismo popular, só se tornou possível porque num momento definido da História do Brasil costurou-se um acordo entre forças sociais ideologicamente distintas e que se opunham. E que, fazendo concessões mútuas, como assinalou a Ministra Ellen Gracie no seu voto, resolveram construir as bases sobre que se fundaria o futuro. O que permitiu a construção do futuro que hoje é o nosso presente, com as demandas que nele cultivamos, e que não são necessariamente as mesmas que as de outros povos e outras nações.

É inegável o papel da OAB na construção desse pacto pelo futuro. A ação de seus representantes naquela quadra, que se revelava como uma encruzilhada medonha na História do país e onde seus protagonistas não tinham o direito de errar, foi relembrada e honrada na maioria dos votos, com as honras que lhe reservam nossa História recente. Alguns votos negaram mesmo à instituição a possibilidade de renunciar a isto tudo e mudar o que está escrito na sua história, trinta anos depois de escrita.

A História está escrita, não pode ser negada. Pode, sim, ser esquecida, mas não é o que no Supremo Tribunal se deseja. O ministro Celso de Mello invocou precedente contido no RMS 23036 – RJ para lembrar a todos o direito inegável à colheita de dados constantes de órgãos públicos para efeito de pesquisa histórica. Ninguém quer esquecer o passado, ninguém deseja apagá-lo. Pelo contrário, a melhor forma de avançar para o futuro é não repetindo erros um dia já cometidos.

Mas ao declarar que, sim, o passado existe, que por meio de um processo dialético o passado de alguma forma é parte do presente, ao reconhecer que a Lei 6683/79 é o marco fundante da nova ordem que desaguou na convocação da Assembléia Nacional Constituinte (como assinalou o ministro Eros Grau, ele mesmo vítima da repressão, o que legitima seu veredito) o Supremo Tribunal Federal obrigou a democracia brasileira a confrontar-se com a sua própria gênese. Ao afastar de vez o receio do passado pela negação jurídica da possibilidade do acerto de contas, privilegiando, assim, a prestação de contas, deu também o impulso inicial na busca dos fundamentos históricos que permitam reconciliar a nossa democracia com os alicerces políticos de sua construção.

22 de abril de 2010

OS JURISTAS-LITERATOS DO ESPÍRITO SANTO


No dia 16 de abril, durante os trabalhos do I Encontro de Escritoras Capixabas, na Assembleia Legislativa do Estado, o professor Francisco Aurélio Ribeiro lançou A Literatura no Espírito Santo: Ensaios, História e Crítica.

Doutor em Literatura, cronista, pesquisador e presidente da Academia Espirito-santense de Letras, o autor reúne nesse volume ensaios sobre a literatura produzida no Espírito Santo, discorrendo sobre sua evolução histórica e analisando-a criticamente.

Dentre os protagonistas do trabalho da escrita literária entre nós, põe em relevo, no texto Juristas-Literatos: Construtores da Cultura Acadêmica Capixaba, juristas capixabas ou que aqui vieram viver, trabalhar, produzir, e que paralelamente à sua atuação na vida pública deixaram para a posteridade suas obras literárias. Chama-lhes o autor, juntamente a administradores públicos do quilate de Muniz Freire, de Jerônimo Monteiro e de Florentino Avidos, de os fundadores das bases da modernidade capixaba. Para que contribuíram os primeiros também com suas obras, seus escritos, suas idéias.

Referindo inicialmente quinze autores, que de seu labor literário podem ser chamados literatos em sentido estrito, o autor destaca a obra de Afonso Cláudio, de Carlos Xavier Paes Barreto, de Augusto Lins e de Eurípides Queiroz do Valle; três deles, à exceção de Lins, desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado, professores da Faculdade de Direito e todos pertencentes aos quadros do Instituto Histórico e Geográfico e da Academia de Letras. Palavras do autor:

“Afonso Cláudio e Carlos Xavier Paes Barreto, por exemplo, foram mais pesquisadores das ciências jurídicas, humanas e sociais que literatos, mas também deixaram produções poéticas e ficcionais esparsas.[...]
Augusto Lins e Eurípedes Queiroz do Valle foram os mais extraordinários intelectuais de seu tempo, comparáveis a Afonso Cláudio e a Carlos Xavier Paes Barreto. Polígrafos, ambos escreveram uma vasta obra de conhecimento jurídico, histórico, sociológico e literário, além de possuírem uma capacidade extraordinária de liderança e disposição para criar, dirigir e presidir órgãos e instituições. Foram ambos presidentes do IHGES e da AEL. Augusto Lins foi um dos maiores especialistas da obra Canaã, de Graça Aranha, e um de seus recriadores em verso, e Eurípedes Valle um pesquisador apaixonado do Espírito Santo e dos capixabas ilustres.”

Francisco Aurélio associa esse labor literário dos enfocados à atuação das instituições que integravam, como já dito, o Instituto Histórico e Geográfico, a Academia de Letras e a Faculdade de Direito, embrião da Universidade Federal.

E nos força a concluir, da meditação do exemplo dos enfocados no texto, que não é descabido que os juristas, os juízes, em especial, possam contribuir também de outra maneira que não a sua função judicante para a vida da sociedade. No caso específico da produção literária, sua atividade profissional, desgastante e absorvente, não deveria esgotar toda sua curiosidade e amor ao estudo.

As dificuldades existem em cada época; alguns as conseguem superar com êxito, outros de forma menos eficiente. Alguns deixam obras que lhes sobrevivem. No caso dos juristas-literatos estudados por Francisco Aurélio, deixaram exemplo de amor ao Espírito Santo, ao meio em que judicavam, trabalhando, também, para dar a entender a sua história e a sua gente, para o aumento do nível cultural local. Ainda das palavras do autor “[...] cem anos depois, cabe à atual geração reconhecer ou redescobrir os seus méritos, não os deixando cair no limbo do olvido.”

Com razão o autor. Mais do que isso, é exemplo que deveria frutificar.

20 de abril de 2010

NO QUINTO ANO DO PONTIFICADO DE BENTO XVI

No quinto aniversário do pontificado de Bento XVI faz sentido colocar-se em relevo a percepção das consequências da sucessão de um filósofo, que era Karol Wojtyla, por um teólogo, que é Joseph Ratzinger. Este, talvez, o maior teólogo vivo, acadêmico brilhante, cujo maior desafio pessoal em termos práticos pareceu ser, à altura, fazer o pastor de almas falar acima do professor de mentes. Para os detratores, aliás, mesmo os que conseguem penetrar o seu elevado pensamento, o parâmetro mais imediato pelo qual continua a ser julgado.

A tônica do pontificado de Ratzinger, Bento XVI, até aqui, é a oposição ao relativismo. Tolerância e convivência não significam afastar-se da verdade, como a entendemos. Não há porque, sendo maioria, conceder à minoria que a verdade por ela professada seja melhor que qualquer outra – quando nada, por não ser maioritária.

A verdade não é relativa. De fato, é uma só, mas o propósito aqui não é fazer teologia nem discutir religião. Esta última, nem mesmo como aquela feita hoje, a face palatável às massas das afirmações teológicas – um fast food teológico da intrincada doutrina cristã.

Gostemos ou não, o relativismo de valores é que, em última análise, põe em causa o sistema penal. A justiça criminal atua por amostragem, atua onde outras formas de coerção social falharam, o que não traz qualquer dificuldade de compreensão, ao menos desde Erlich. Ou seja, o sistema penal faz parte de um sistema maior, integrado pelas normas morais e religiosas, sem as quais fica capenga. Os mesmos atores sociais que nos impingem o relativismo como valor máximo, estribados numa espécie de racionalismo utilitário que no entanto tudo admite menos o conduzir-se de acordo com critérios tradicionais de conduta, os morais e os religiosos, são os mesmos atores que solapam a credibilidade no sistema penal. O que, por um lado, tem sido positivo, porque força à “purificação” do sistema judicial como um todo.

É da mesma espécie, no fundo, a motivação dos que zombam dos dogmas da Igreja Católica. Dogma é uma orientação predeterminada para fixação de uma verdade incontestável da fé católica. É infalível, no sentido de irrevogável, de ser vinculante para verdades centrais da fé. É reformável, para evitar sua caducidade, para “suprir o descompasso da língua, aperfeiçoar as fórmulas usadas, purificar o esquema de pensamento, manter viva a verdade da revelação em sua relação com a existência humana e dar mais clareza e plenitude a esta verdade” (Mysterium Ecclesiae, Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, junho de 1993). Ou seja, o dogma não se discute, mas é atualizável, sempre para captar a verdadeira essência da revelação.

A lei penal, guardadas as devidas proporções, funciona de maneira similar. É incontestável, como núcleo de uma certa forma de organização social que aquela sociedade vem considerando ideal ao longo do tempo. É atualizável, visando a captar, no momento atual, qual é a verdadeira essência do desejo social que lhe dá validade. Mas sua aplicação não pode ser afastada no caso concreto. O critério prático pretenso-hermenêutico de partir do por que se transgrediu a norma penal deve sempre ter em conta que as considerações sobre um certo “finalismo prático” da conduta criminosa, fora das causas legais de justificação, são no mínimo injustas.

Assim, interpretar a lei não significa negar sua aplicação, em nome de ideologias e sem motivação legal para tanto. Da mesma forma que o exercício da convivência e da tolerância não significa abandonar princípios dogmáticos nem determinações de consciência postos, só para ser agradável ou menos incômodo a uns ou a outros.

Numa quadra tão relativista, os pilares da estabilidade social como conhecida historicamente entre nós (a lei, a Igreja Católica) são rudemente espancados. À primeira, a lei, acresce o fato da operação de desmoralização ao Poder Legislativo, com que se transfere a preponderância, em termos metodológicos, da sua interpretação à aplicação pura e simples do precedente judicial recomendado - o na forma de súmulas. À instituição, acresce o “pecado” de, em sendo a mais poderosa instituição do mundo, não ser criação anglo-saxã. Precedentes judiciais (como praticado hoje em dia) e denominações neopentecostais o são.

Em última análise, tenhamos em conta que a intransigência na manutenção de suas orientações confessionais, como praticada por Bento XVI, é o principal exemplo que a Igreja Católica dá ao mundo na salvaguarda do direito à diferença. O fato de a opinião pública não conseguir permear a opinião popular nesta seara específica é o patrimônio maior da Igreja, desde os tempos do Império Romano. Desvios de conduta do clero são outra coisa.

17 de abril de 2010

Reler Afonso Cláudio, hoje


No dia 02 de agosto de 2009 completaram-se cento e cinqüenta anos do nascimento de Afonso Cláudio de Freitas Rosa. A contrário do que sucedeu em 1959, por ocasião do centenário, os meios de comunicação ignoraram a data. Para não dizer que não houve qualquer registro, lembre-se a crônica do professor Francisco Aurélio Ribeiro, presidente da Academia Espírito-santense de Letras, no segundo caderno d’ A Gazeta, pincelando-lhe em traços rápidos, como exige o espaço, os traços de caráter e as realizações.

No entanto, Afonso Cláudio dá nome a um próspero município do Espírito Santo (aliás, o deu ainda em vida do homenageado), o antigo município de Alto Guandu, na região central. Se se procura hoje em bibliotecas do Espírito Santo por Afonso Cláudio, por certo pensarão os atendentes que se está procurando por dados referentes ao município.

Afonso Cláudio de Freitas Rosa nasceu em 02 de agosto de 1859, no lugar Mangaraí, em Santa Leopoldina/ES, onde seu pai tinha uma extensa propriedade, herdada do avô, um dos primeiros a receber sesmaria naquela região. Aliás, as terras onde foi posteriormente fundada a Colônia de Santa Leopoldina foram doadas por sua família para instalação dos colonos, conforme consta de documento do IBGE referido por sua filha e biógrafa, Judith Freitas de Almeida Mello, em obra de 1959.

Cursando as primeiras letras numa escola do próprio lugar, aos onze anos de idade foi à Corte estudar na escola do latinista espírito-santense Manoel Ferreira das Neves, retornado em seguida para os estudos preparatórios no Atheneu Provincial, de Vitória.

A formação superior em Direito a fez em ambas as escolas então existentes, a de São Paulo e a do Recife, onde se formou, em 1883. Sua atuação nas letras, em periódicos de Vitória e do Recife, fazem com que Clóvis Bevilaqua, historiador daquela instituição de ensino, o inclua (aliás como a Muniz Freire), como representante da segunda fase da chamada Escola do Recife, movimento de idéias surgido naquela Faculdade, nas vertentes poética (que incluiu Castro Alves), crítico-filosófica (que incluiu Sílvio Romero) e jurídica (que incluiu Viveiros Castro), mas sempre debaixo da influência do renovador indiscutível da ciência do Direito no Brasil, Tobias Barreto de Menezes.

Formado, abolicionista convicto e propagandista republicano desde ao menos 1883, quando da publicação do seu Manifesto Republicano, Afonso Cláudio foi o escolhido pelo Marechal Deodoro da Fonseca para presidir o Estado do Espírito Santo, o que gerou um “racha” entre os líderes republicanos locais, principalmente os de Cachoeiro de Itapemirim. Esgotado pelas dificuldades de administração do grupo político, bem como dos problemas propriamente inerentes à condução dos negócios públicos, Afonso Cláudio retirou-se para o Rio de Janeiro, para tratamento de saúde, deixando o governo nas mãos de Constante Sodré, dez meses após a nomeação.

Só retornou ao Espírito Santo para compor o Tribunal de Justiça, após a dissolução da primeira formação, o que se deu em 24 de dezembro de 1891, por não terem sido respeitados os direitos dos magistrados mais antigos. Compondo a Corte como advogado, foi designado por decreto o presidente do Tribunal assim renovado, função para a qual foi reeleito pelos seus pares por mais três vezes seguidas, denotando seu prestígio entre os demais desembargadores.

A parir de 1892, dedicou-se com afinco aos estudos na área jurídica, colaborando na revista O Direito, do Rio de Janeiro, a convite de um de seus editores. Sua produção nesse ramo é copiosa, e jaz esquecida, injustamente, já que suas manifestações e argumentação jurídica, no tempo em que surgiram, isto é, no momento da implantação do regime republicano presidencialista no Brasil, são, a exemplo dos pareceres de Rui Barbosa e outros jurisconsultos contemporâneos do mesmo quilate, parte do arcabouço teórico que delineou juridicamente o funcionamento das novas instituições públicas que então começavam a existir.

Inobstante ao fato de sua produção nas áreas de História, Crítica, Etnografia (onde se inclui o Folclore), por que é lembrado nos meios culturais do Espírito Santo, Afonso Cláudio lamentava a sorte dos escritos de jurisprudência em geral, e previa o esquecimento de seus trabalhos nessa área, pelo desinteresse do público leitor, mesmo sendo a jurisprudência meio importante para compreender os novos tempos por que passava o país na virada do Império para a República. São suas palavras na Introdução ao volume Consultas e Pareceres, que publicou em Vitória, em 1918:


“Os escritores brasileiros, na República, constituem a classe que menos influi nos destinos da Nação, seja que o hodierno industrialismo literário preferentemente favorecido e apetecido, prescinda do concurso das idéias e das teorias, que em toda a parte do mundo civilizado, formam a base da cultura social, seja que a ‘monocultura’ da política tenha empolgado o caráter nacional de tal arte, que o atrofiou para tudo mais que entende com a vida mental de um povo. [...]
Nem os livreiros nem o publico querem saber do valor intrínseco dos livros; o de que ambos fazem questão capital é das proporções e do preço vil da aquisição [...]
Quanto ao público, nem há palavras assaz expressivas que traduzam a indiferença e o desdém que o dominam, mormente depois que acariciou com a sua predileção a literatura das revistas que estampam insulsos folhetins e detestáveis calungas.
Tal a contingência a que vivem sujeitos os escritores nacionais, especialmente os juristas dignos de tal qualificativo, neste recanto do universo! [...]
Conheço bem a força decisiva do fator do meio, nas formações sociais, quando não sofre o contraste de outras influências não menos enérgicas, e no caso, um meio refratário às coisas do espírito, acanhado, quase inculto, não exige perspicácia para dar a conhecer os efeitos do seu emperramento.”

Por esta época, de volta ao Espírito Santo de mais um período em disponibilidade, por motivos de saúde, período este em que pôs banca de Advocacia no Rio de Janeiro, Afonso Cláudio já fora um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em 1916. Continuou em funções como desembargador do Tribunal de Justiça por todo o período do governo de Bernardino Monteiro, aposentando-se em 1920, quando se radicou definitivamente no Rio de Janeiro. Aí, dedicou-se integralmente ao estudo, principalmente do Direito, e ao magistério jurídico, sendo o fundador da Cátedra de Direito Romano na instituição de ensino que posteriormente viria a ser a Faculdade de Direito de Niterói, hoje integrada na Universidade Federal Fluminense.

Quem procurar a obra jurídica de Afonso Cláudio para pesquisa encontrará, na Biblioteca do Tribunal de Justiça, o primeiro volume de seus Estudos de Direito Romano, e na Biblioteca Pública Estadual o Guia do Registro Civil e Consultas e Pareceres, aliás encadernados em volume único. Nada mais. As instituições culturais do Estado, o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (de que, como já referido, foi um dos fundadores) e a Academia Espírito-santense de Letras, de que ocupou a Cadeira n.º 01, cuidam de homenageá-lo durante este ano, tendo a primeira cunhado medalha comemorativa de seu sesquicentenário de nascimento, e a segunda instituído um ciclo de palestras sobre as diversas facetas de sua obra. Neste ciclo falaram, sobre o político, o Acadêmico João Gualberto Vasconcelos; sobre o historiador, o professor Estilaque Ferreira; sobre o folclorista, a Acadêmica Ester Abreu Vieira de Oliveira; sobre o jurista, o Acadêmico Getúlio Marcos Pereira Neves; sobre o abolicionista, o Acadêmico Gabriel Augusto de Mello Bittencourt.

Do trecho transcrito acima, pode-se imaginar de quanta atualidade se revestem as idéias de Afonso Cláudio. Político conciliador, pensador materialista que não refutou a matriz cristã da cultura brasileira, jurista com acentuada visão sociológica do Direito num período marcado pelo positivismo, suas preleções de Direito Romano podem também ser lidas, pelas comparações entre os institutos antigos e os contemporâneos, que fez o autor, mas também os contemporâneos e os atuais, a serem feitos pelo leitor de hoje, como um “comentário crítico” à nova ética pública que se vem instalando lentamente no país ao longo de todos esses anos.

Assim, mesmo tendo a consciência, como Afonso Cláudio a tinha, de que “é do bom tom olhar com desdém, acompanhado de riso escarninho, tudo quanto emerge do passado” mas ainda assim pretendendo acender o interesse na leitura de Afonso Cláudio hoje, é que transcrevo um outro trecho da sua oração de boas vindas ao curso de Direito Romano da Faculdade de Direito de Niterói, em 1926, publicada na contemporânea Revista Vida Capixaba:


“Não suponhais, mancebos, que faço de propósito a apologia do saber antigo, em desapreço da ciência de hoje. Não; assinalo simplesmente que, enquanto na alta antiguidade tão resplendente era a auréola da jurisprudência que dos soberanos é que partia o reconhecimento da nomeada dos jurisconsultos, constituindo-os o órgão de expressão da vontade legislativa do país, hodiernamente essa nobilíssima função é o pábulo predileto de letrados bisonhos, de náufragos de outras profissões, de ordinário desprovidos da aparelhagem moral, intelectual e profissional, que deve concorrer na pessoa do legislador.”

Deviam ser tempos terríveis aqueles idos de 1926...

(publicado na Revista A'Angaba, n.º 05, Vitória, Agosto/2009)

O CULPADO E A LEI

Com o aumento incontrolado dos índices de criminalidade as pessoas se vêm a toda hora confrontadas pelo noticiário com “injustiças” cometidas em nome não se sabe de que princípios, o mais das vezes quando um elemento que confessa a prática de um crime é posto na rua em nome de algum formalismo processual.

Ora, como entender isso? Por que profissionais que só se ocupam de estudar as filigranas legais cometem erros capazes de invalidar toda uma investigação bem sucedida, contribuindo ainda mais para a sensação de impunidade que assalta a população?

Em primeiro lugar, devem as pessoas saber que o Estado Democrático de Direito é construído sobre o primado da lei, que deveria representar a vontade da maioria. Essa maioria legisla através de seus representantes eleitos e postos no Parlamento para isso. No entanto, o Estado Democrático de Direito dá vez a que as minorias, étnicas, sexuais, culturais, religiosas, econômicas, também se possam manifestar – os direitos fundamentais de última geração contemplam o direito à diversidade e ao pluralismo, pelo qual, por exemplo, uma minoria religiosa pode se organizar de molde a obter maioria numa Câmara Municipal e impor ou dispor festas religiosas de sua confissão à maioria.

O primado da lei, no tipo de sociedade democrática ocidental em que vivemos, é tão importante que toda Constituição Federal que o Brasil redige contempla um princípio que é uma conquista da civilização: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude da lei. Assim, não há mais coercitividade em ordens emanadas de barões, baronetes ou do Príncipe, nem mesmo na República (a nossa ainda mantém estes personagens, mas com outros nomes). A coercitividade vem, sim da lei. Só ela obriga.

Às vezes o problema são as leis locais, quando redigidas em desacordo com a lei maior, aquela que nos organiza como Estado de Direito. Por isto a Constituição reserva alguns assuntos nos quais somente a União, para continuarmos a tê-la, pode legislar. Se o Poder local se mete nestes assuntos, seja para o bem ou para o mal, atenta contra a ordem nacional. Neste caso pára-se tudo e faz-se uma verificação da conformidade daquela lei local com a lei maior. É o controle de constitucionalidade.

Agora o implicado em processo criminal que confesse a prática de um delito. Ora, se é réu confesso, para que se perder mais tempo com preciosismos processuais? O raciocínio, que muito enfrentei na sala de aula, me faz lembrar uma história do Velho Oeste americano: naquelas plagas o pior delito era o roubo de cavalos. Tendo sido capturado certo dia um facínora ladrão de cavalos num daqueles progressistas povoados, a turba revoltada já tinha em mãos a corda para enforcá-lo numa árvore da praça. Eis que surge, atirando para cima e detendo o justiçamento, o defensor da lei e da ordem, o homem da estrela de prata, vociferando-lhes na cara que o acusado tinha direito a um julgamento. Ao que o líder da “maioria” respondeu: - concordo, mas vamos julgar logo para que possamos enforcá-lo ainda antes do pôr do sol...

Em eras passadas a confissão era a Rainha das Provas, aquela que se buscava a todo custo, até para que o julgador fosse dormir convencido de ter praticado justiça. No regime do atual Processo Penal brasileiro a confissão tem valor relativo, sua validade deve ser aferida pelo Juiz em consonância com os demais elementos probatórios apurados no processo. É que vale no processo penal a verdade real, a forma como os fatos realmente aconteceram, ou tão próximo disso quanto humanamente possível verificar. E o acusado pode ter interesse em se auto-acusar - para proteger alguém ou para dificultar a continuação das investigações, por exemplo.

Então, se até mesmo a confissão deve ser corroborada por outros elementos, o que importa mesmo são as provas. É fato, e aqui a observância da lei deve ser rigorosa, porque a colheita de provas, das provas que serão usadas depois para decidir, é isso o que vai selar a sorte do acusado. Existem provas que são proibidas, existem provas que não têm validade. Mas geralmente o que impede o livre curso de provas no processo é o prazo legal para sua produção pelas partes. De tal maneira que, escoado o prazo, a parte perde a oportunidade de trazer a prova para os autos. É uma das conseqüências do Princípio da Igualdade de Armas no processo. Daí só mesmo o Juiz, se considerar aquela prova imprescindível para proferir sua decisão, poderá produzi-la, e em determinadas condições.

Porque é o Juiz quem preside à produção das provas. Para isso, a principal ressalva que a lei faz ao juiz é que tenha competência para tanto, isto é, que tenha atribuições legais para estar ali. Um Juiz do Trabalho ou de Família não pode presidir um processo em que um policial militar troca tiros com um traficante, que vem a falecer. Cada Juiz com sua competência. E no Estado de Direito, a cada acusado o seu juiz. O Princípio do Juiz Natural é outra garantia da civilização, que impedia, na época da organização dos Estados nacionais, um acusado passasse da justiça de um feudo à de outro, ao sabor dos interesses do senhor feudal. Mas para isso, os iguais devem ser tratados igualmente. Se um em determinadas condições deve ser julgado por um juiz, outro em condições idênticas não poderá ser julgado por outro juiz. É uma das conseqüências do Princípio da Isonomia.

Tudo isso, competência, juiz natural, produção de provas, é garantia do cidadão. Não, não do cidadão que está sendo processado, mas daquele que não está e que provavelmente nunca vá sê-lo. Porque é este conjunto de garantias legais que me permite dizer aqui que ele pode nunca vir a sê-lo. Se esse conjunto de garantias deve ser diminuído para mandar o confesso imediatamente para a cadeia? Isto é com cada um, mas ele só é culpado à vista da lei. Pessoalmente lido numa repartição da justiça responsável pelo controle da atividade policial militar, e de tanto acompanhar o trabalho diário dessas mulheres e homens muitas vezes me pego desejando outros parâmetros de garantias legais, a exemplo do que foi feito na Itália, para combater a atividade criminosa organizada.

Mas mesmo que, quanto mais democrático o Parlamento, mais este parlamente, não poderá ser o juiz como tal a introduzir esses outros parâmetros. Porque senão se estará substituindo ao Príncipe, e então, como é da natureza humana, um outro pode querer vir a ser mais Príncipe do que ele. E aí recomeçaremos novamente do zero - aliás, como já previra Aristóteles.
(Publicado na Revista ESSA, Vitória, Ano II, n.º 12, Abril/2006)

SANTO ISIDORO DE SEVILHA, PADROEIRO DOS HISTORIADORES E DOS INTERNAUTAS


Dia 04 de abril é o dia consagrado pela Igreja Católica à veneração de Santo Isidoro, Arcebispo de Sevilha, padroeiro dos historiadores e dos internautas.

Isidoro nasceu em Cartagena, na Espanha, no ano 560 d.C., tendo falecido em Sevilha, em 636. Irmão de São Leandro, a quem sucedeu como Arcebispo de Sevilha, no ano 600. Presidiu vários Concílios, notadamente os de Sevilha e de Toledo, que contribuíram para organizar a liturgia católica, fixando-lhe as diretrizes.

Isidoro combateu a heresia ariana ao lado de São Leandro, numa época de grandes transformações por que passava o mundo cristão devido à consolidação do domínio das tribos bárbaras sobre o território do que havia sido o Império Romano.

Homem de ação e de pensamento, Isidoro escreveu Etimologias, em 20 volumes, uma síntese de todo o saber antigo até o seu tempo. Obra monumental que é considerada a primeira Enciclopédia, já baseada num sistema de organização de base de dados, como a que estrutura hoje a Internet. Não por outro motivo foi indicado pelo Vaticano, em 1999, padroeiro da rede e de seus usuários.

Padroeiro, também, dos historiadores, por conta de suas obras de levantamento histórico, donde se destacam a História dos Reis Godos, Vândalos e Suevos, fonte para a história da Europa no que concerne ao período das invasões bárbaras; Crônica, uma versão sobre a História Universal; Catálogo de Escritores Eclesiásticos, importante fonte bibliográfica para o estudo da Patrologia; Biografia e a Morte dos Santos, Biografias e Hagiografia. Sua cultura enciclopédica permitiu-lhe produzir também, entre outros, A Natureza das Coisas, versando sobre Astrologia e Cosmografia, verdadeiro panorama da Ciência medieval e Diferenças e Natureza das Palavras, léxico e filológico. Na sua preocupação de fixação da doutrina cristã produziu diversos tratados sobre Moral e comentários sobre o Antigo e o Novo Testamentos.

Era chamado “Doutor Insigne do Nosso Século, Novíssimo Ornamento da Igreja Católica, o Último no tempo, mas não na Doutrina, o Homem mais Sábio dos Últimos Séculos, cujo nome deve ser pronunciado com reverência”. A propósito, Dante Alighieri o coloca no Paraíso, em passagem da Divina Comédia.

Inspirador de canonistas e jurisconsultos, “príncipe dos escritores de toda índole”, foi declarado pelo Papa Bento XII Doutor da Igreja, em 1722. Seu Etimologias teve várias edições, correntes até pelo menos ao século XIX (a mais recente foi a de Faustino Arévalo, publicada em Roma entre 1797 e 1803). Em que pese já estar àquela altura defasada pelo inevitável avanço do conhecimento humano, a acumulação do conhecimento não se dá aos saltos. A herança de Santo Isidoro foi sendo naturalmente aperfeiçoada e acrescida ao longo dos tempos, mas lhe sobrevive há mais de milênio o exemplo de investigador meticuloso, do historiador metódico, do pensador rigoroso, do administrador competente, do pedagogo espiritual incomparável, enfim, da sua assombrosa erudição a serviço de uma causa.

"NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS"II


A PEC 89/2003 repristina velhas eras da História do republicanismo no Brasil. A contrário do que pensam os atuais pensadores da ordem pública brasileira, as prerrogativas da magistratura (os "privilégios", na linguagem dos "formadores de opinião") já foram amplamente debatidos, quando da mudança de regime no país. Em especial a vitaliciedade (garantia maior da imparcialidade dos magistrados, que por conta disso não ficam coagidos a atender em suas sentenças interesses de quem os possa demitir) era considerada uma afronta ao princípio do igualitarismo inaugurado pela ordem republicana, extintos que foram privilégios de nascimento e de classe na Carta de 1891.

Grandes teóricos, a exemplo de Hamilton, um dos construtores do federalismo norte-americano, de Rui Barbosa, um dos delineadores do Direito Público brasileiro, demonstraram o contrário, e puseram em relevo a necessidade de garantir decisões que, proferidas por homens, pudessem utlizar-se de outros parâmetros decisórios que não o medo de desagradar quem os pudesse demitir, privando-os de seu sustento.
Assim, e aceita essa alta ponderação em favor do interesse maior na ocasião, a imparcialidade nas decisões judiciais, tal garantia passou a integrar a ordem constitucional brasileira, desde a primeira ordem republicana: art. 57 da Constituição de 1891; art. 64, alínea "a", da Constituição de 1934; art. 91, alínea "a", da Constituição de 1937; art. 95, inciso I, da Constituição de 1946; art. 108, inciso I, da Constituição de 1967; art. 113, inciso I, da Emenda Constitucional n.º 01/69 e finalmente art. 95, inciso I, da Constituição de 1988.

Voltando o debate político à situação em que estava nas vésperas da República (agora sob o argumento de "impunidade dos juízes"), outros os valores perseguidos hoje, onde a existência de uma margem esperada de desvio de conduta pretende-se expurgada já na esfera administrativa (em detrimento de todos os outros interesses ponderáveis e desprestigiando a "sentença judicial", única que há 120 anos desinveste o magistrado da função pública), não se perde de vista que o interesse, aí, é, concorrentemente, deslocar a decisão sobre perda do cargo para um eixo central - leia-se o CNJ - obstaculizando, assim, possíveis manifestações do "espírito de corpo" dos tribunais locais.

Mas não há dúvida de que o preço a pagar é muito mais alto do que se o vende à opinião popular de maneira superficial. Aqui relembro palavras de um daqueles jurisconsultos que trabalharam no desenvolvimento das idéias publicistas que moldaram as instituições brasileiras: o capixaba Afonso Cláudio de Freitas Rosa, egresso da Faculdade de Direito do Recife, primeiro presidente republicano do Espírito Santo e primeiro presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo após sua reinstalação, em 1891, respondendo a consulta sobre irredutibilidade de vencimentos de magistrados (in Consultas e Pareceres.Vitória: Artes Graphicas da Victoria, 1918, p. 82/96):

"A vitaliciedade é um estímulo ao serventuário [em geral], que assegurando-lhe os meios materiais de existência, incita-o a especializar-se com esmero, dedicação e inteligência no desempenho do mister em que foi provido. [...]a independência dos atos, a imparcialidade e justiça nos julgamentos, a circunspecção na conduta social, seriam descabidas se a magistratura não tivesse o amparo da vitaliciedade [...]

Nem se pode compreender que incumbindo ao Poder Judiciário a atribuição de se pronunciar e decidir sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos atos emanados dos poderes legislativo e executivo, declarando-os válidos ou não, pudesse exercê-la com independência, se livre fora aos governos destituir os magistrados de suas funções, sempre que as decisões não lhes agradassem.

De nada mais precisaríamos para a completa subversão no país do regime legal"

Há 90 anos. Mas outros os tempos, outros os problemas, outras as soluções. Só não se justifica a repetição caprichosa do passado, simplesmente porque se perde tempo no caminho em direção ao futuro.


11 de abril de 2010

"NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS"

O estudo da História se faz no mínimo para se evitar a repetição de erros do passado, visando a facilitar o avanço para o futuro. O estudo da desprezada vertente da História cultural, ou das idéias, é bastante útil porque no Brasil se fundam "novas ordens" com certa regularidade, com consequentes trabalhos de remodelagem (leia-se "modernização") das instituições - instituições essas que veem sendo pensadas ao longo de muito tempo. Não se justifica, portanto, nesse trabalho, o repetir-se erros do passado, o repetir-se, sob os mesmos fundamentos, debates já debatidos.
Há, hoje, uma "nova ordem", em que se estabeleceu que o Poder Judiciário deve "descer da sua Torre de Marfim", "parar de olhar para o próprio umbigo", "servir ao povo", "fazer-se necessário" etc etc.
Nessa busca incessante pela modernização das nossas instituições republicanas, volta à baila a questão do acatamento às decisões superiores como exteriorização da "disciplina judiciária do magistrado " (art. 10, parágrafo único da Resolução n.º 106 do CNJ).
No número de 1938 da Revista Espírito Santo Judiciário o advogado Nuno Santos Neves, conselheiro da OAB/ES, discutia no artigo "A Justiça local não está adstricta a seguir a jurisprudencia da Côrte Suprema" a obrigatoriedade de seguir-se no Tribunal local a orientação dos julgados do Supremo Tribunal. Vale a pena transcrever a introdução do artigo (deixando de lado a argumentação jurídica do corpo do trabalho, que dizia respeito às esferas federal e estadual de atuação do Poder Judiciário), como uma simples contribuição para que possamos retomar a discussão desse ponto, para onde parece termos retornado, 70 anos depois:

"Juizes e advogados reportaram-se, perante a justiça local, á jurisprudencia da Côrte Suprema, como se devesse ser obrigatoriamente seguida, obedecida, muito embora pensando, confessadamente, o julgador, em contrario ás razões de decidir daquella Egregia e Veneranda Côrte. O causidico, ante uma citação adversa de um ou dois julgados da nossa Côrte Maior, abandona a doutrina, despreza a exegese da lei, esquece a jurisprudencia dos Tribunaes locaes, e como que attingido fatalmente pelo vaticinio aziago de um oraculo, só descança quando obtem a sua remissão, encontrando um qualquer accordão daquella mesma Egregia Côrte, no sentido do direito que defende.
Parece-nos inteiramente desvirtuosa essa orientação e pratica.
Não somos, nem nunca fomos, irreverente e iconoclasta. Admiramos na Côrte Suprema a maior expressão das letras juridicas do Paiz; o nosso mais douto collegio onde se reunem os proceres da nossa sciencia do direito. Mas ficamos aqui. Não lhe atribuimos virtudes oraculares. Não citamos a sua jurisprudencia como os antigos escolasticos a Aristoteles: magister dixit, e tanto basta.
Não ha duvida que em direito, como em relação a qualquer outra disciplina, é sempre commodo e mesmo util estar-se magni nominus umbra, mas para a justiça, o que deve pesar é a autoridade do argumento e não tão somente o argumento da autoridade."